terça-feira, 8 de outubro de 2019

Elevadores


Tarde ensolarada lá fora. Aqui dentro, o relógio da parede e olhares superiores comandam o restante do tempo. De trabalho, de vida, a minha existência restrita nesta tarde a um punhado de relatórios produzidos ao longo da semana, mês de pagamento, desvio de finalidade, correções no realizável, tudo em minhas mãos. Então o sinal divino, e olho em meu computador e ao redor: todos os sistemas diretivos estão momentaneamente emperrados, é preciso suspender a parte essencial de minha atividade. Levanto e junto trago a inutilidade daquelas listas, tabelas, conferências; antes comunico aos próximos a minha súbita retirada. São exatamente três da tarde, e uma porção de pensamentos ruins levantam junto comigo no balanço da cadeira que fica. Deixo os emolumentos de lado, a pior parte do trabalho também. Entre os olhares dos colegas, parte deles estranha, alguns meio sorriso aliviado, a maioria, contudo, nem se movimenta. Ficam todos eles ali sentados diante da tela, mirando o vazio do cursor piscando a imaginar o que faremos com esse colega. Alguns me olham com ar confuso, e eu não consigo deixar de pensar nessa massa falida de idiotas. Eis a repartição.
Precisava respirar, ali, sufocado pelo ar pobre dos perfumes e os cigarros amarrotados em bolsos de camisas. Tudo isso existe, mesmo assim abafado. Alego algo preciso sobre alguma tarefa a fazer, entre certo e meio vago, abro com calma a porta principal, giro um tanto trapaceiro no próprio eixo; pelos ombros, olho ainda mais uma vez para meus colegas, deixo a sala da contabilidade e seus compromissos patrimoniais, não antes sem inventar algum tipo de desculpa, escusa acumula, sempre aquela reunião indigesta na sala do vigésimo segundo andar.
Eram esses os meus pensamentos quando, instantes depois, cheguei diante do elevador com um pedaço de papel vago e indefinido, mesmo assim ainda tive gana de pedir em voz alta o meu andar (nada acontece se você não aperta o botão). Ainda deu tempo de olhar o grande vão abaixo de mim, o espaço entre os dois lados do prédio, essas tecnologias vagas e salientes criadas por arquitetos para coisa nenhuma, estes profissionais não conseguem enxergar os números do custo envolvido, e muito menos a funcionalidade daquele espaço vazado que não seja atirar alguém dali de cima. Fiquei ainda um instante distraído em meus pensamentos até chegada silenciosa do elevador. A porta fechou; subimos. Dois andares acima ela entrou.
Tinha para lá de quatro anos que não nos víamos. Estava diferente, nada lembrando o último encontro frustrado, no dia em que na verdade nem a vi. Sua presença monumental naquele ambiente fechado do elevador, o giro estonteante e efuso de seus cabelos, o perfume velho conhecido (usado só nos encontros), por isso resolvi mudar os planos na hora, decidi por desembarcar no pavimento seguinte. Voei com as mãos para mudar a marcação do andar no aparelho; ela ainda não tinha marcado nada. Movemos juntos os braços, os pulsos, a mão, no dedo toda a tensão, covardia correspondida em números. Quando nossas mãos se tocaram e dedos, solidários, colidiram nos botões daquele aparelho foi que ouvi o barulho e reparei no molho de chaves que ela carregava na outra mão. Eram muitas.
Não estraga o painel do carro?
Ela ficou desconcertada, em seguida respondeu:
E daí? Aqui eu tenho até a chave do carro do meu marido.
Eu olhando a irreverência disforme do molho de chaves, o balanço das importâncias sugeridas, imaginando portas, quartos, locais discretos, afastados, quarenta minutos de carro, a cadência de seus movimentos, aqueles dias, tardes perdidas, a inutilidade da cobrança, a baixa produtividade na volta, e por um luxo do destino, ou falha estrutural desse prédios altos e infinitos, as geringonças a atravancar o nosso futuro, ocorreu que ninguém ainda marcou seu anda, e eu ainda tive tempo de simular novos encontros, outras cores, oportunidades, e tudo se abre quando em meio sorriso caindo a falso nela, a porta se abriu, escuto a sirene do aparelho se manifestar – plim!
A campainha toca, sei, agora não tenho mais dúvida: ela desce primeiro.

Outubro de 2019.

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