sexta-feira, 22 de setembro de 2006

A Fortaleza Móvel

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

A tentação de todo cronista é criar um mundo em que todos mergulhem junto. Ele vive a angústia do relato auto-referenciado. O cronista é o louco mais disfarçado que existe. Quando escrevemos sobre uma partida de futebol, então, essa proposição ganha outros contornos. O cronista esportivo sempre quer explicar o que aconteceu no jogo, e alguns elementos dispersos da realidade estão lá para ajudá-lo: o placar, os gols, algumas jogadas e, para encurtar a lista, os torcedores à beira do gramado. A “Angústia” do cronista, assim, resume-se em ser fiel aos acontecimentos. Como se uma partida de futebol fosso algo concretamente explicável. Prefiro o fluxo de consciência na descrição da partida, porque hoje eu abri a primeira página do livro de Graciliano Ramos, e tem leituras que a gente não explica... Como não se explica, aliás, certos jogadores ocasionalmente em campo.

O jogo de ontem. Sim, é sobre isso que estou escrevendo. Como posso descrever o que aconteceu ontem, em nosso jogo semanal, quando uma roda viva interminável de jogadores e jogadas embaralhou-se à minha frente – eu sou o goleiro, sempre é bom saber para se entender a “angústia” –, pois do ponto de vista em que me encontrava era um moinho que eu via rodando em todos os pontos do gramado, um picadeiro de oportunidades inconclusivas, um ataque por todos os flancos sem a devida objetividade exigível. Quero dizer com isso que o jogo estava disputado, e se tem uma coisa que é ao mesmo tempo boa de se participar e péssima de se comentar é uma partida de futebol bem jogada. É um tédio para o cronista. Não acontece nada porque justamente aconteceu um monte de coisas. Como na Trilogia da Incomunicabilidade de Michelangelo Antonioni, o lento movimento das existências e a falta de ação é o que dá sentido à narrativa. No jogo de ontem, ação demais. Então eu me pergunto como sair desse delírio – o ponto de vista que um dia eu escolhi para descrever o jogo – o inusitado.

Para entendermos os olhos de pintor do goleiro cronista é preciso ver as peças da engrenagem. Os jogadores. Sempre tem um que ressalta aos olhos como um calção cor fúcsia (é bom sempre escrever “cor” porque ninguém sabe o que é fúcsia), ou qualquer outra excentricidade do gênero, e é esse que se destaca na paisagem e quase sempre passa a ser o protagonista do absurdo.

Ali. Diante dos meus olhos, ele circulava. O circulacionista. Típico jogador que só pode ser definido por uma palavra que (não adianta procurar) não existe no dicionário, cujo significado poderia ser traduzido como “o que circula”, ou seja, em palavras simples, o volante, o que (deveria) marcar os atacantes adversários, antigamente chamado “volante de contenção” (na bela imagem de que durante o jogo o volante é uma verdadeira “taipa de açude” a conter o time adversário), e se existem poucas letras que separam “volante” de “voante”, não terá sido apenas um exercício metalingüístico típico de Padre António Vieira nos “Sermões”; não, não terá sido mera coincidência. E digo isso porque durante todo o tempo que durou a partida de ontem o jogador-voador não fixava posição. Tanto que este goleiro, o narrador do absurdo, teve que orientar não só o jogador-maratonista, mas o seu time inteiro para chegar ao “posicionamento perfeito dentro de campo” (olha eu de novo escrevendo como um canastrão da bola) e foi assim que me deparei com ele: o circulacionista. O jogador que aparentava ser uma fortaleza móvel, tal a sua altura e movimentação ao redor do campo. Eu disse “ao redor” porque ele não se fixou em lugar nenhum, tamanha sua rebeldia tática. Então, aconteceu: ele não marcou. O jogador mais improdutivo em campo ontem é, hoje, o meu personagem. Aquela Fortaleza Móvel que ontem tirou o meu sono durante a toda partida.... Porque se tem uma coisa que eu gosto de fazer quando estou jogando com os meus amigos é sonhar.

Deve ser por isso que a bola passa ao meu lado de vez em quando.

Porto Alegre, 22 de setembro de 2006.

0 ComentÁrios:

Postar um comentário

<< Home