domingo, 14 de novembro de 2010

A mão esquerda de Egberto

CRÔNICAS A MEU FILHO
De onde estou, é apenas uma das mãos que vejo – a esquerda. E é o suficiente. Nesta noite em que decidimos sair com nosso filho para assistirmos a um concerto de violão com um dos mais respeitados compositores e instrumentalistas da música popular brasileira, Egberto Gismonti, pouco importa se o teatro está cheio, se cabeças atentas à minha frente balançam na busca de cada centímetro de música, e se por causa disso eu só consiga ver a mão esquerda do poeta – o que importa é esse raro prazer de ouvir essa lenda da música brasileira. Mas Egberto não é apenas um músico, ele é uma orquestra completa, uma sinfonia sobre dez, doze cordas; uma nação musical condensada em anos de pesquisas e nos tantos e infinitos acordes que extrai de seus violões. E é esta orquestra de cordas e tons de um homem só que vejo correr diante de nós feito a luz e a magia de uma dança a encher, a percorrer nossos olhos e ouvidos e a invadir a percepção atenta de meu filho de nove anos, Mateus. O pequeno está sentado ao lado da mãe a duas cadeiras de mim; atento, ele tem o olhar fixo, a pose ereta e clássica dos velhos apreciadores de música, mas incrivelmente hoje, aqui, ele é quase um inocente, um bebê ao lado dessa platéia jurássica de adultos, que, silenciosos e compenetrados, apreciam a música de Egberto desde os anos 1970.
Nesse passeio pelo tempo, recordo-me que hoje, quase trinta anos depois que apanhei em mãos o primeiro long-play de Egberto Gismonti, o mesmo disco que agora está preso às mãos de Mateus. Sim, empolgado com o show, ele trouxe de casa o velho disco que agora segura nas mãos, pois espera que ao final show Egberto tenha a generosidade de lhe dar o seu autógrafo. Vale muito essa expectativa, esse autógrafo; vale a certeza de que meu filho manterá viva no futuro e escutará todas as pesquisas etnográficas de Egberto pelo folclore brasileiro gravadas em disco. Aplaudimos por isso, na esperança de erguer o bom astral do artista. E quando o show termina, nós vibramos e ao mesmo tempo levantamos nosso grande cartão de autógrafo, o disco que traz na capa uma foto de rosto inteiro do artista com o olhar intenso do músico – Corações Futuristas –, os meus olhos que era também o nosso, do outro lado, vidrados que estávamos no show desta noite.
Na saída, aguardamos o público retirar-se. Só então me dirijo ao pessoal da produção na esperança de alcançar a benevolência e a mão esquerda do mestre – a mão que dançou sobre o braço de tantos violões. Ao meu lado, Mateus quer muito o autógrafo de Egberto Gismonti, artista a quem foi apresentado ainda no formato de disco, anos atrás. Hoje, encantado pela fantasia de uma música viva e transcendental, Mateus saíra desta sala com a certeza de escutou música de verdade.
Pela porta lateral do palco, mestre Egberto, calmo e gigantesco na sua altivez, aparece para atender aos mortais que tiveram a persistência de esperar a sua aparição; em seguida se dirige a Mateus (uma criança, ali, era algo sui generis), pergunta a idade, se ele gosta de música, se Mateus tem agá, e por fim apanha a caneta e com a mão destra desenha com leves movimentos o nosso autógrafo, da mesma maneira que minutos antes apanhara seu violão de doze cordas e nos agraciara com sua sinfonia brasileira. Mateus abraça o álbum, desce em nossa direção e esconde tudo só para ele – a noite, a música, o regalo. Na saída, ainda nos diz que achou estranho Egberto, que ficou procurando um lugar na capa do disco para o autógrafo, e não posso deixar de pensar que no palco suas mãos, inquietas, também procuravam o melhor lugar para nos desenharem belas composições.

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