Trilogia do enfado - I
O VENDEDOR DE ENCICLOPÉDIAS - I (O PORTÃO)
Esta rua, a rua em que agora se encontra parado, sempre lhe deu sono.
Quem sabe pela longa extensão de muros, roseiras secas e cercas baixas,
repetição do casario, bairro carioca, esse jeito que o povo daqui tem em
recebê-lo.
Ele, o vendedor de enciclopédias.
Parado diante do portão, ele pensa. Pensa no embuchado dos dias, no
aborrecimento destas portas em que toda semana, num circuito perfeito e
matematicamente calculado, ele retorna.
Rua das Traças.
Que nome este que alguém poderia dar
a um lugar tão narcótico, agastado pelas horas, silencioso, em que os únicos
sons a concorrer com o pisar de seus gastos sapatos são, lá do outro lado da
rua, o latido do cão e a chegada do carteiro.
Ele, contudo, tem outra missão: vender enciclopédias. E, no entanto, já
faz dez minutos que estará parado em frente ao número 150 da Rua das Traças. Só
agora bate palmas, chama, lembra o nome, sabe quem vai encontrar, e é quando a
Senhora Maria Teresa Ferreira dos Santos Azevedo abre a porta da casa que ele tem
a certeza de que agora, sim, poderá fartar-se de abusar da paciência de sua
melhor cliente.
Já vendeu de tudo para ela; hoje são enciclopédias que ele traz na grande
maleta roxa que carrega presa à mão junto ao corpo em terno e gravata.
Ela se aproxima, chega na qualidade média de uma temperatura morna,
indigesta em trajes tais – pijama, camisola, seja-lá-o-que-for na cabeça – e sonolenta
(mesmo que sejam dez da manhã) pergunta:
– Posso ajudar?
A boca seca, seco de ideias, rodízio, fastio, ele apenas pede para
entrar, quer mostrar a sua melhor mercadoria, a senhora tem uma água enquanto segue nessas estopadas que todo
vendedor de enciclopédia tem que saber usar para vencer na vida e sobreviver no
negócio.
O portão range – o primeiro passo tem a semelhança de uma morrinha em
quatro capítulos – e este será o tom da conversa do vendedor de enciclopédia na
próxima uma hora e meia.
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