Trilogia do Enfado - II
O VENDEDOR DE ENCICLOPÉDIAS - II (SALA DE ESPERA)
Sentado diante das paredes lisas desta sala de espera na casa-e-conjugado
de bairro distante em que agora se encontra, ele espera.
Ele, o vendedor de enciclopédias.
Representa muito esse tempo em que estacionado no macio gasto deste sofá.
Representa horas, dias, esse infinito entre o pedido de um copo d’água e agora
esta morrinha, esta espera.
Única distração: olhar as mãos, verificar os anos que passou entre
calçadas de bairros de periferia de cidades deste Brasil, e agora ali: em terno
surrado e gravata nada menos, vendendo coleções de conhecimentos que, sabe, mofarão
em estantes de casas como esta:
Confins, bairro carioca.
Rua das Traças, número 150.
O destino de alguém que veio de tão longe, agora, isto: mero vendedor de
livros por metro quadrado, essas coleções volumosas de maciço conhecimento, hoje
em dia um objeto quase descartável, sim, ele sabe que já não é mais um homem
“de hoje em dia”.
A consciência disso. O compasso desta espera. Então ela retorna, lenta,
com o copo d’água entre as mãos, e a sede é tanta que nem repara que ela trocou
de roupa, penteou os cabelos e que nada tem do cheiro das cozinhas dessas casas
às onze da manhã, mas sim o tremor de terra pulsante dos solteiros e solitários
que, exatamente como ele, vendem por palavras um mundo feito de sonhos.
É assim, falando de sonhos, de tudo que se pode encontrar adquirindo
nossos produtos, que ele inicia a conversa programada sobre a coleção que está
vendendo, enquanto os olhos delas são duas forças motrizes em sua direção, a
receber, quem sabe, uma resposta sincera deste homem surrado que já percorrer
tanto na vida – e agora isto:
Apenas a próxima venda.
O convencimento.
A boa fala, a impostação de voz e a coluna ereta.
E então ele desanda a falar sobre a importância de dispor das excelentes
encadernações, da quantidade de saber ali depositado, a beleza desses volumes
em sua estante, o conhecimento que a senhora pode adquirir para seus filhos não tenho ou para o seu marido viajando e então ele lembra do tanto que
já percorreu, chão-batido-poeira-este-país, casas de periferia, a mesma fala, o mesmo
cheiro, o mesmo enfado.
A vida seca de um vendedor de enciclopédias.
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