quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Trilogia do Enfado - III

O VENDEDOR DE ENCICLOPÉDIAS - III  (ESTANTES)

 No percorrer desta ampla hora em que discorreu sobre as vantagens de seu produto, ele tinha os olhos cegos na paisagem desenhada à sua frente.
Ele, o vendedor de enciclopédias.
Eram livros também o que ele tinha diante de si, justo que como um vício ele ficou feito estátua a olhar aquela estante enfileirada de poeira e livros (os livros, ele sabem, não são lidos naquela casa). E pensando na disposição das coisas naquela estante, ele agora se dá conta de que ela está diferente, que ela não o reconheceu na chegada, e diferente de outras vezes (o único ponto de contato com sua memória) ela está realmente muito bem arrumada.
Ainda espera um instante (tempo), desvia os olhos (insistência), e como se estivesse a observar pela décima quinta vez a velha e conhecida estante (repetição), ele faz a pergunta, e sempre surge aquela pergunta:
– Vai ser hoje?
Sente como um impacto, soco no estômago, o longo tempo de reação dela (já foi mais atilada), e realmente estranha esse proceder lento na manhã de hoje, mas é só então que percebe o frasco vazio em suas mãos, aquelas letras médicas, a decisão antes anunciada, a cada visita, essa necessidade que ele sente de simular a compra e a venda quando já sabe de antemão que os sentimentos delas não se medem por metro quadrado como estantes na sala de uma casa de periferia – não ele estava em busca da derradeira confirmação.
O enfado e a indiferença de enxergá-la na zona gris localizada logo ali, perto do fim: então ela deita a cabeça, ainda consegue dizer baixinho Me deixa, avança no sono, profundo, definitivo, talvez o seu último sono, e assim pensando-sentindo-danando ele se levanta e decidido a desistir definitivamente daquela velha empreitada barraca, fecha a porta, avança pelo silêncio partido das folhas do pátio, ainda pensa mais uma vez no ridículo daquelas estantes.

A vida morta de um vendedor de enciclopédias.

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