Trilogia do Enfado - III
O VENDEDOR DE ENCICLOPÉDIAS - III (ESTANTES)
No percorrer desta ampla hora em que discorreu sobre as vantagens de
seu produto, ele tinha os olhos cegos na paisagem desenhada à sua
frente.
Ele, o vendedor de enciclopédias.
Eram livros também o que ele tinha diante de si, justo que como um
vício ele ficou feito estátua a olhar aquela estante enfileirada de
poeira e livros (os livros, ele sabem, não são lidos naquela casa).
E pensando na disposição das coisas naquela estante, ele agora se
dá conta de que ela está diferente, que ela não o reconheceu na
chegada, e diferente de outras vezes (o único ponto de contato com
sua memória) ela está realmente muito bem arrumada.
Ainda espera um instante (tempo), desvia os olhos (insistência), e
como se estivesse a observar pela décima quinta vez a velha e
conhecida estante (repetição), ele faz a pergunta, e sempre surge
aquela pergunta:
– Vai ser hoje?
Sente como um impacto, soco no estômago, o longo tempo de reação
dela (já foi mais atilada), e realmente estranha esse proceder lento
na manhã de hoje, mas é só então que percebe o frasco vazio em
suas mãos, aquelas letras médicas, a decisão antes anunciada, a
cada visita, essa necessidade que ele sente de simular a compra e a
venda quando já sabe de antemão que os sentimentos delas não se
medem por metro quadrado como estantes na sala de uma casa de
periferia – não ele estava em busca da derradeira confirmação.
O enfado e a indiferença de enxergá-la na zona gris localizada logo
ali, perto do fim: então ela deita a cabeça, ainda consegue dizer
baixinho Me deixa, avança no
sono, profundo, definitivo, talvez o seu último sono, e assim
pensando-sentindo-danando ele se levanta e decidido a desistir
definitivamente daquela velha empreitada barraca, fecha a porta,
avança pelo silêncio partido das folhas do pátio, ainda pensa mais
uma vez no ridículo daquelas estantes.
A vida morta de um vendedor de enciclopédias.
0 ComentÁrios:
Postar um comentário
<< Home