Era apenas uma letra esse
RELATO
Na conclusão de meu curso de Pós Graduação em Assessoria Linguística, o maior mico de que se tem notícia.
Fui entregar a dissertação de conclusão de curso – chamam a peça de "parecer" – e depois de fazer mais de trezentos e vinte e dez mil revisões, cada vez que eu olhava achava um erro, minúsculo, mas erro; cada vez que consertava e imprimia achava outro, e aquela coisa já estava ficando psicótica, não tinha mais fim, era noite e dia, imprime e corrige, confere e reimprime, descabela e acelera, volta de novo, relê, relê tudo de novo, embaralha, já não há café nem muito menos fé que chegue que baste, que rompa; eu já estava ficando meio louco com aquelas módicas 43 páginas (incluído aí capa, barba, cabelo, bigode e toda sorte de anexo e penduricalho), eu pensando: "se eu entregar isso aqui com algum erro não serei um revisor"; duvidando: "como poderei trabalhar com revisão se entregar isso assim", eu pensando igual aquele personagem dos cartoons do meu passado, perdido nos anos 70, a hiena que dizia "oh céus, oh vida, oh azar", agora beirando a porta do Pós-Graduação, ao meu lado, quando entro na sala da secretaria.
Plaft.
O barulho dos dois maços encadernados quase matam de susto a garota da secretaria do Pós, a pessoa responsável por receber as angústias e os trabalhos dos acadêmicos. Tal era o silêncio da Universidade às 9h55min da manhã que ela pulou de susto.
Entreguei. Tão feliz, serelepe, missão cumprida, saí dali voando pelos poucos quilômetros da Avenida Orfanatrófio, aquela descida sem fim em direção ao centro da cidade, seguindo pela borda do rio, a paisagem estava azul e compensou as duas últimas semanas de escrita e reescrita, o trajeto acalmando a minha ansiedade de quem entrega a vida em pouco menos de 50 folhas. Foram alguns poucos minutos de desaceleração, dentro do carro, mãos calmas e cansadas ao volante, segui pelas encostas da cidade, o contorno do rio, a beleza desse lado da cidade, e eis então que já estou sentado no conforto de minha sala de trabalho quando toca o telefone:
"Edgar, o título do trabalho que tu revisou tem 'contrutor'?"
"Como é que é?"
"Está escrito ‘contrutor’ na capa, será que era para ficar assim? Às vezes o nome tem que ficar errado mesmo."
Duas horas depois estou eu de volta ao Alto Teresópolis, material todo impresso, duas vias, tudo encadernado, a cola quente da encadernação esquentando as minhas mãos nesses dia claro e frio, a segunda encadernação, desnecessária, ali custando o dobro, esvaziando o meu bolso, eu já estava novamente dentro do elevador, protegendo a relíquia, as páginas da minha formação acadêmica, tudo certo, agora tudo certo e acertado, tudo de novo, só que agora eu chego devagar, apanho a versão "errada", deposito a nova, digo um "Obrigado" e "Até breve", esperando que nada seja tão breve entre o ato da entrega e a entrega do ato, então aperto o botão da angústia (ou do alívio), o elevador chega, desço, caminho, aqui estou.
Tudo isso só por causa de uma maldita letra esse, umazinha, e foi o que bastou: não era "contutor" mas "construtor", e quase que eu estava apresentando o meu trabalho final de revisão sem revisão.
Maior mico.
Serei um revisor?