segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O notório problema

 

Durante dias fiquei aguardando ela chegar. Primeiro, vieram os homens, as máquinas e equipamentos, a sequência de reformas. Duas semanas depois, tudo estava concluído. Nem o lixo se enxergava, socado como ficou dentro de grandes caçambas de resíduos. Aquela residência cheirava à nova, vista daqui. Notei, contudo, que havia movimento na casa no início da semana seguinte. Eram os jardineiros, sua equipe, e eles vieram em muitos e começaram com o barulho de cortadeiras, tesouras de longo alcance, sopradores, rastelo. O sossego sobreveio um dia antes do feriado prolongado de Carnaval. A paisagem mudara, a cidade ficara vazia, eu já não tinha para quem olhar pela janela. A monotonia foi cortada pela assunção iluminada da dona. Chegou em caminhonete alta, desceu, abriu portas e janelas enquanto desfazia malas e sacolas, mas foi com as mesmas malas e nenhuma sacola que, poucas horas depois, ela partiu. A tempestade sossegou dentro de mim. Um silêncio constrangedor tomou conta daquele trecho da rua, e assim continuou pelos três primeiros dias de folia. No quarto dia, a vassoura começou a desflorar o pátio carregado de folhas, e tudo isso – pasmem – às sete da manhã, e foi naquele momento que eu vi a moça pela primeira vez, ou a ilusão de ver uma moça, cabelos longos como imaginei, recato, precisão, passos de uma sambista contida, a ilusão carnavalesca de um folião recolhido em seu ambiente, ponto de vista restrito, quadrado fechado, sentado de vez nestas rodas, num ângulo feito de lentes, porque em verdade, percebi, ela estava apenas recolhendo o lixo, varrendo as folhas, esfregando os vidros, subindo e descendo as escadas externas da casa reformada. Marquei o dia: era terça-feira no Méier, fevereiro ou março. De uma das grandes gavetas de apoio, localizada aqui ao lado da janela onde me encontrava, comecei a retirar, um a um, os equipamentos. Começava ali o meu notório problema.