quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Resenha - Filme: De olhos abertos

O documentário é o gênero cinematográfico que mais permite a aproximação entre público e objeto fílmico. A premissa básica do documentário é esta: aproximar pessoas e realidades. Toda e qualquer outra forma de filmar será ficção. A realidade filmada é o centro de tudo num filme de tom documental, e por isso tais obras nos agregam conhecimento. Melhor: reconhecimento. Registrar histórias de vidas, trajetórias, períodos históricos, temas, situações, projetos, está no centro desse tipo de registro; depois, entender melhor essas realidades. O filme De olhos abertos, lançado em 2020 e dirigido por Charlotte Dafol, é a documentação visual do projeto “Boca de Rua”, em que pessoas em situação de rua produzem suas próprias notícias, imprimem em jornal e vendem nas ruas de Porto Alegre. Neste ano de 2020, o “Boca” completou 18 anos de existência. O documentário celebra isso.

No centro do documentário De olhos abertos estão alguns dos problemas sociais mais cruciais da sociedade brasileira: a falta de moradia, a ausência de apoio familiar, o abandono social pelas autoridades, as dificuldades de sobrevivência (até mesmo de alimentação), criminalidade nas ruas, drogadição, alcoolismo, além da violência policial, por vezes arbitrária e desproporcional. O grupo de moradores de rua que produz e vende o seu próprio jornal, o “Boca de Rua”, um projeto inédito por trazer o olhar da rua sobre a rua, está junto há 18 anos. Além de uma fonte de renda, o jornal é, para os seus redatores (os moradores de rua produzem as notícias), uma voz que pode ser ouvida, uma ferramenta de denúncia e de organização perante a a população e as autoridades da cidade onde vivem. O grupo cresceu, a sociedade mudou, mas as dificuldades continuam basicamente as mesmas. As lentes da diretora Charlotte Dafol são delicadas ao mostrar a dura realidade de quem não tem onde morar, ou enfrenta a rejeição da família, problemas com drogas, alcoolismo, sentindo, por vezes, a inadequação/rejeição nos abrigos da Prefeitura Municipal, sem falar na violência social quase diária. Nesse sentido, o documentário De olhos abertos capta com sensibilidade as estratégias de sobrevivência dos moradores de rua que precisam, diariamente, conseguir o que comer, achar onde dormir, cuidar de si e dos seus pertences e sobreviver à violência urbana. São preocupações cotidianas que somente eles mesmos podem nos contar – e é o que o documentário faz. A diretora dá voz tanto para os idealizadores do projeto como para as pessoas em situação de rua.

No documentário, a coordenadora do “Boca de Rua”, Rosina Duarte, conta como o projeto criado pela ONG Alice – Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação foi decisivo para o nascimento do jornal. Conta-nos também sobre as reuniões, os debates, os conflitos dentro do grupo e, por fim, sobre as belas matérias produzidas. Impossível seu relato não falar das perdas, tratando-se de populações em risco. O enfoque, contudo, é no trabalho coletivo, na produção das notícias, na escolha dos temas a serem abordados, em decisões importantes como as regras de convivência do grupo, a divisão de trabalho, as estratégias de venda na rua e, até mesmo, as capas, muitas das quais registram os principais problemas enfrentados pelas populações de ruas. Alguns moradores de ruas que foram ou são figuras importantes da história do jornal aparecem no documentário, como “Bocão” e “Beiço”, entre outros. As histórias mais comoventes também aparecem, mas o documentário tem o tom exato. Ele escuta essas pessoas. Como no filme de Charlotte Dafol, o melhor aqui é ter próximo de nós a opinião dos próprios moradores de rua sobre o filme: “A gente não costuma se ver na tela. A maioria de nós nem tem televisão! Mas foi uma experiência muito boa. Gostamos do resultado final e da participação de cada um. Falamos o que tinha que ser falado, contamos a realidade da rua, ninguém mentiu. Alguns não foram entrevistados, porque não quiseram ou porque não dava para pegar tantos depoimentos. Mas todos apareceram em alguma cena, porque todos nós somos o Boca. E cada um tem seu jeito de trabalhar, de falar, de vender, de abordar as pessoas, na sinaleira ou na Cidade Baixa. Quem não queria muito ser filmado avisou e ficou mais de cantinho, só isso. Afinal, foi um baita trabalho, não só da Charlotte, mas de todos nós. Sentimos orgulho ao compartilhar essas histórias, sem vergonha de contar o que passamos. Muitos não sabem da dificuldade de comer ou dormir com sono tranquilo, para quem vive na rua, dia e noite. Ter que arrumar um papelão e uma aba para descansar, ter as suas coisas roubadas ou jogadas no lixo… o filme acompanha tudo isso. Mostra até a gente cozinhando à noite e acordando de madrugada. Porque nós não temos hora para dormir, mas temos sim para levantar, antes mesmo do amanhecer, às cinco horas da manhã.”

O registro documental feito pelo trabalho de direção é sensível. Nascida em Paris em 1987, enraizada no Brasil desde 2013, Charlotte Dafol é cineasta, fotógrafa, autora e musicista. É formada em História e trabalha em feiras ecológicas. Na França, dirigiu sete curtas-metragens de ficção entre 2009 e 2012, junto com estudantes de cinema. No Brasil, colaborou como repórter e fotógrafa com diversas mídias alternativas. É autora dos livros Pietro Germi et la comédie à l’italienne (França, 2012) e Como num romance (Brasil, 2020). De Olhos Abertos é o seu primeiro documentário longa-metragem. Neste trabalho inaugural, a diretora focou-se nos relatos dos moradores de rua. Para contar a história do jornal, Charlotte utilizou essencialmente o depoimento de sua maior idealizadora, Rosina Duarte. Tanto num como no outro caso, o filme cumpre com honraria a melhor e mais importante qualidade que um documentário pode ter: saber ouvir, uma lição sempre defendida por um dos maiores documentaristas brasileiros, Eduardo Coutinho. No filme de Charlotte Dafol, as imagens das ruas de Porto Alegre, o registro dos ambientes onde vivem as populações de ruas e onde é discutido e produzido o jornal preenchem os 112 minutos de projeção. Completam esse trabalho visual a bela colocação de canções representativas da música popular brasileira, além de registro de situações pontuais da cidade que interferem diretamente na sobrevivência das populações em situação de rua. Um belo trabalho de cinema, digno de um projeto de tão elevado alcance social.

De olhos abertos é um filme para você mudar sua opinião sobre tudo que já havia pensado sobre moradores ou pessoas em situação de rua. Acima de tudo, porém, é um registro preciso de um trabalho coletivo pioneiro no território brasileiro. Por fim, e não menos importante, um filme sobre pessoas falando de suas vidas. Um filme sobre a esperança de mudar a realidade.

Bom divertimento

CULT # 483 – 16/12/2020



Informações sobre a exibição paga do filme disponível em http://www.deolhosabertos.com/ , ou na página da Alice: ALICE – Agência Livre para a Informação, Cidadania e Educação .