domingo, 9 de fevereiro de 2020

Ombros

Primeiro de janeiro todos nós íamos para o litoral, praia, sol, areia, estivéssemos mortos, bêbados de ressaca ou caídos num canto da casa. A casa lotada até as cortinas das janelas. Dona Emerinda nos recomendava: vomitem longe das minhas cortinas; mandei lavar todas para o Ano Novo. A casa de Emerinda era a casa de seu marido, Dioclécio Torres, um respeitado empresário em nossa cidade, sujeito cujo fortuna foi feita trabalhando duro no ramo dos pneumáticos. Sua empresa distribuía os rodados para máquinas, automóveis e caminhões da minha pequena Faxinal. Todos na cidade eram convidados – a festa de final de ano na casa dos Torres destruía portas e armários, baixava engradados de cerveja, corroía fígados e alguns namoros recém-começados. Jamais as cortinas de Dona Emerinda.
No primeiro dia do ano, Don Dioclécio, como era conhecido na cidade, apanhava uns vinte garotos entre catorze e dezoito anos e embarcava todos nos na carroceria baú de um dos caminhões de sua empresa. Todos, aniquilados ou não, subíamos no furgão, alguém fechava a porta por fora, e lá íamos nós, quatro horas e meia depois, deixados n’alguma praia entre Magistério e Quintão. Ao final da viagem alguém abria a porta do baú e corríamos todos para a beira-mar, o banho aguardado, o calor de uma carroceria fechada em meio ao santo suor da puberdade. O sacolejar nos deixava tontos e assim entrávamos no mar adentro – ali, a igreja de todos os bêbados. Os sobreviventes contavam depois o sal daquela experiência.
Numa das últimas viagens de minha adolescência encontrei aqueles ombros. A turma convidada por Don Dioclécio já havia mudado bastante nos últimos anos, acompanhei tudo, meio de longe, meio por dentro. Como afilhado que era, pude notar que as caras e os tipos levados  por Don Dioclésio (auxiliado por seus gerentes próximos) para algum casarão dessas praias na época quase desertas haviam se alterado. Eram outras as gentes. Que antes eram barulhentas, e a essa altura já se encontravam assaz silenciosas para me causar desconforto e muitas perguntas. Onde a alegria e descontração? Onde a euforia de viajar horas no calor dos corpos? Quem eram os meus companheiros, agentes soturnos daquela viagem? Pensei que a grande quantidade de bebidas (a cada ano aumentava o volume de incidentes, e nem as cortinas resistiram ao fogo da adolescência) talvez tivesse alterado também a resistência de muitos – ou estávamos ficando velhos e adultos – e a brincadeira não tinha mais graça. Exceto para mim: havia o desafio daqueles ombros, e eles me fascinaram até a última viagem.
No decorrer dos anos, nunca consegui descobrir de quem eram aqueles ombros silenciosos que depois de uma hora de viagem encontravam abrigo junto aos meus, e isso tudo vinha crescendo nos três últimos verões. Eu não sabia, viajávamos no escuro, quietos para não despertar a fúria e repressão de policiais rodoviários – e havia o balançar sonolentos dos bêbados e empanturrados. Menos eles: firmes, aqueles ombros era o meu recife.
No balançar das minhas memórias mais escuras e profundas vividas no interior do baú – as promessas de Don Dioclécio –, lembro como noite viva em dia claro do deslize suave de mão tão sedosa em meio ao balanço da estrada e o cheiro bruto da borracha, e esta foi a lembrança mais viva do último e do melhor dos verões.

Fevereiro de 2020.