segunda-feira, 25 de julho de 2011

Roberto

Madrugada. Alguém agoniza. Ao redor, parentes. Poucos. E bem poucos ainda a acreditarem na mágica esfarrapada dos médicos.
Outra madrugada, e agora Roberto, o filho mais novo do moribundo, levanta e num gesto inesperado mais conivente apaga as luzes. Ficam as velas – e o olhar incrédulo de um ou outro que ainda estava acordado – e que acorda e agora dorme de novo. Sim, o resto dormitava, aprofundados numa espécie do sono da fuga. Esperavam, no insólito de uma noite mal dormida, a chegada do dia, da hora clara, do término, enterro, fim. Despachar aquele ali deitado para o lado de lá – a providência de olhar a cada instante o relógio.
Antes, ela chega. Viva, fria, a madrugada evola – e na dança incorpórea da hora madrasta dos moribundos, o tempo vai derrubando um a um. Só resta acordado o cão, sempre fiel, ao lado de quem tanto admirou e nunca o compreendeu. Sentado ao pé do morto ele olha através da fresta da janela um pedaço de lua lá fora.
E ele esteve ali a vida inteira – e a vida inteira lhe foi nada.
Este cão chamado Roberto.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Carga viva

Já carreguei de tudo no meu truck: vaca, porco, cavalo e outros seres inanimados. Aquele tipo de animal, nunca. Rugiam (leões?), uivavam (lobos?), fuçavam (seriam porcos?) na caçamba do caminhão. Agonia de bicho. Nunca gostei emprego. Carga viva. Escrito atrás. Palhaços que me ultrapassavam buzinando. Bichos se remexiam. Gostei pouco. Sempre trabalhei nisso. Sim, disseram, carga viva. Mas não estavam quando lá no Hospital Veterinário despejaram a carga (se os defensores dos animais me ouvem falando assim...) na carroceria do caminhão. Barulho ensurdecedor. Aquele monte amorfo fedorento barulhento a minha paciência naquele dia zero arranquei o bruto a caixa gemeu os bichos as coisas os coisa tudo aquilo berro ficaram berrando estrada afora barulho ensurdecer aí parei tinha que abrir a caçamba verificar olhar os bichos. Então no que rodei a trava de segurança eles pularam. Agora o chão. Vermelha poça ao meu redor. Arranhões pelo corpo, os dedos esmagados, a perna da calça arrancada, um naco de carne separado. Acordei. Tontura. Tudo cinza. Me puxaram. Largaram na carroceria. Barulhos na cabine. Rodaram a chave, deram a partida, primeira marcha, solavanco, segunda, em frente, terceira, pra onde? eu aqui: carga viva.