segunda-feira, 19 de março de 2007

Um Retalho

Desde que se sentou à mesa de seu escritório, foram trinta e poucas folhas de papel. Como se fossem tentativas de chegar ao recorte exato, preciso, milimétrico: quatro centímetros e meio por quatro. Nada mais, nada menos do que um pequeno quadrado representativo. Um recorte. Um estreito retalho destacado do contexto mais amplo daquela ansiedade, enquanto o maço branco e acetinado lhe recordava o que tinha pela frente. Mero exercício, passatempo pálido e totalmente desprovido de sentido. Porém exato, limpo e objetivo como essa folha de papel que tem diante de si. Sentado na única mesa disponível dessa ampla biblioteca desde as duas da tarde, um homem recorta pequenas tiras de papel e as mede. Olha. Busca algo, não sabe, talvez saiba, alguém disse, nem quer pensar nisso agora.

A operação é simples e consiste em apanhar um papel em branco, riscar quatro linhas com a ponta do lápis, depois empunhar a tesoura, recortar. A idéia é retirar um simples quadrado, um quase retângulo de quatro e meio por quatro. Centímetros, tudo isso em centímetros, quase nada aqui fora, um monstro lá dentro. Algo tão pequeno que talvez coubesse mesmo dentro dele (absurdo pensar que não), escondido e suficientemente disforme para esconder-se, ali, na parede interna, em movimento crescente, um explorador observado nos últimos meses, em baterias de procedimentos que levaram à constatação de um volume precário e incidente, porém lancinante, por vezes variável, mutatis mutandis. Algo percorrendo o seu interior, no início em perfeito descrédito, depois crença, comprovação, no papel de que algo por dentro poderia estar. Então apanha na mão o pequeno recorte, imagina, vai, olha, observa, como se retirasse, é simples, é uma pequena folha em branco do tamanho da sua dor. Nada, e nada mais.

Isto lhe disse o médico, no início da tarde, feito Buda, imperador, verdugo, ali, sentado numa mesa repleta de receituários e encaminhamentos de baixa e outras considerações infalíveis, necessárias e urgentes, absurdamente consideradas no contexto de um monólogo executado. Falou que era coisa simples, um retalho, abre, segura firme, levanta, olha, retira, é um procedimento de rotina. Isso ele disse.

Ouviu. Quer dizer, acha que ouviu. Levantou da sala, cruzou a recepção, a secretária lhe dizendo “o senhor não pode esquecer o papel”, não ouviu, bateu a porta, nem tchau, nenhum ai, apenas mergulhou nas escadas da sua fuga. Para casa. Chega, ninguém para lhe fazer perguntas, um alívio. Tira a importância das coisas, a sensação de que não esqueceu nada, de que nada trouxe além daquela estúpida idéia. Subiu; um instante ainda ficou pensando nas palavras do homem de jaleco branco. A folha que ele lhe mostrou. A certeza. E ela vinha escrita em linhas brancas, atropeladas por caracteres pretos, escuros, prontos e preparados para qualquer tipo de intervenção – mesmo que fosse pequena. Então apanhou um maço de folha, sentou-se na poltrona, e ali ficou a tarde inteira, consumido naquele procedimento inútil, um exercício vascular repetitivo, o trabalho de encontrar o retalho perfeito entre o maço de papéis que tinha ao seu lado. Só isto: a tarefa que deu a si: a de recortar um pequeno quadrado medindo o tamanho exato de sua angústia.

Talvez amanhã fique bom.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Calor do Medo

O ronco do grande caminhão branco que acaba de entrar no posto funciona como um despertador. Lembra o pai quando o acordava às cinco da manhã para reiniciarem a viagem. Era verão. Férias do colégio viajadas dentro da boléia de um 1519. Agora, em comum, apenas o calor. São sete horas da noite de um entardecer quente de verão, e esta é a hora em que os motoristas de caminhão costumam encerrar mais um dia de trabalho, dar fim às longas viagens pelas estradas desse mundaréu, quando rodaram sabe-se lá, oitocentos, quem sabe até novecentos quilômetros desde que despertaram, lá longe, no liminar desse dia. Na estrada desde cedo, eles procuram o descanso em algum ponto de civilização. O posto. Todos procuram aquele lugar conhecido na beira da estrada, onde possam encostar o caminhão, tomar um banho, jantar, conversa fora, uma bebida, por fim descansar. Chegam como quem chega ao fim. Ronco que corta a escuridão – enquanto o medo fica dormitando na estrada.

Marcos chega um pouco antes, quando o movimento está apenas começando. Vem devagar, contando os passos pela trilha das macegas. Sua estrada é outra – uma trilha de pouco mais de um quilômetro que inicia próximo à sua casa, cruza campos e arrabaldes para vir cair direto aqui, nesta rua estreita encostada ao lado desse vasto posto de abastecimento. Marcos faz o caminho de quem mora por ali, vem caminhando sempre por de trás, longe das luzes, na viela pela qual circulam os poucos moradores dessa pequena vila. A estrada lateral ao posto é justamente a parte mais escura e desabitada do lugar – por ali costuma chegar. No trajeto, um silêncio rouco e abafado o acompanha ao longe. Chega escondido, ninguém vê; para além da cerca do posto não se enxerga nada além de uma camada compacta de pó, escuridão e medo. Ninguém do posto caminha por esses ínvios caminhos. Marco chega, vai direto ao acesso.

Parado ali, simplesmente olha. Sua admiração pelo grande exército nacional dos transportadores começa às sete horas da noite. Ele fica encostado à beira da entrada, observando a chegada das carretas; abana para alguns caminhoneiros (muito o conhecem); admira placas, conta rodas, estuda modelos; fica bem próximo aos caminhões para poder sentir o ar quente que sai dos motores. Marcos sabe que precisa sentir o calor das máquinas em movimentos para entender que é verão. As viagens com o pai. Depois ele circula pelo lugar, percorre alguns metros até a grande área de estacionamento, onde os últimos brutos se recolhem. Marcos repara no suor dos motoristas, no queimor das rodas, no aquecimento global dos eixos e articulados - tudo são lembranças. Nenhum cheiro escapa; e busca o som dos componentes eletrônicos, a vibração das cabinas ou algum detalhe da mecânica em movimento; respira. Marcos respira os cheiros e deles retira suas recordações. O pai que vai chegar.

Às nove horas, tudo caminha no silêncio das últimas conversas, coisas ditas entre rodas e carretas. São vozes que ainda se escutam adiante. Como se alguém falasse com Marcos, dissesse (o pai), vamos dormir, amanhã acordamos cedo, tem muito ainda até chegar a São Paulo; mas, não, é Jonas, o rapaz do posto. É ele quem vem chamar Marcos, dizer: é hora de ir para casa, talvez o teu pai chegue amanhã, dê lembranças a Dona Elvira. Às nove em ponto Marcos começa a voltar para a casa. Sua mãe o espera, um copo de leite, a comida sobre o fogão, por esquentar. Ele entra pela cozinha, cruza pela mãe, sentada, ele quieto e soturno, enquanto ela, olhos de explosão, não consegue dizer ao filho, mais uma vez não consegue, porque de repente as palavras lhe trancam, a voz embarga; então ela quietará antes mesmo do primeiro ai, e quando enfim, antes do choro, ela tentar lhe dizer que não adianta esperar, será que não consegue entender isso, meu filho, escuta, o teu pai, ele não vai voltar porque já morreu.