terça-feira, 28 de setembro de 2010

Morri, segunda-feira

para Samir

Estabelecido na cama, na cama ali ele ficou.
O resto da segunda-feira.
E o resto da segunda feira o seu corpo cheirando a coberta.
Balança de peixaria. Corrimão de escola. Porta da Assistência Social. Cheiros, memórias de um tempo perdido, indiferença.
Sua vida.
A acreditar, agora ali, as tantas e quantas vezes em que se imaginou naquela situação, inabalável, intocável, a rua lá fora, ele ali dentro a não levantar mais.
E mais: um chute no mundo.
Outro no chefe no emprego na falsa loira e na loucura de certas leituras
Linhas tortas, escritas, vividas.
Gente estranha.
Kafka. Mário Peixoto. John Fante. Bolaño.
Lia muito.
E agora nenhum um livro lhe estaria próximo, ou caído ao lado da cama, ou em qualquer lugar que seja ou esteja.
Esteve.
Voltou: era febre e não era.
Era ele: nada, nenhum
Apenas um.
Apenas cobertas.
E uma latente vontade de matar o resto da segunda-feira já morta.
Pode ser esta a demanda de um sujeito brigando com as cobertas.
Com o mundo.
Numa segunda-feira.
Morta.
Os dois mortos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Sinistro


Deu a direção:
– São Lucas Tadeu.
Poucos movimentos do outro lado do banco: resmungos, a mão na buzina, a outra na marcha, arrancou. A selvageria em movimento, ele, o motorista de táxi.
Assustador.
Principalmente se você é moça, dezenove anos, e tem ao seu lado, no banco de trás, o filho da patroa e precisar levar ele. Mas que caminho é este? Ela estranha, ela vive as entranhas de mais um taxista de mal com a vida (foram quantos este mês?).
– Estou saindo pela estrada, ele ainda disse.
O medo correndo por ruas nunca antes navegadas, mas ela não conhece tão bem a cidade, veio mês passado do interior, a patroa tão boa, e agora era só levar a Laurinha no...
– Moço?
Mais resmungos, seguem-se golpes violentos na direção, lances de pura impaciência refletidos no retrovisor, Mas o que é que ele tem? Ela quase quista insiste:
– Moço? É não este o caminho para o....
Um rugido saiu de sua boca, parecia uma resposta, mas era surda, era um grito vindo do fundo de tudo, e não foi por acaso que ela se afundou no banco, agarrada à menina.
Minutos depois, chegaram. Ele só então virou-se. Era uma fera solta, ainda mais rude, e foi atropelando, e foi dizendo Trinta pratas, e perguntando, tal como um cão danado que interroga o executor:
– Mas o que vocês duas querem no cemitério sozinhas a esta hora da manhã?
Na grande placa de entrada se lia: Cemitério São Lucas Tadeu.
– Mas moço, era o colégio... Colégio São Lucas Tadeu.
Expulsou as duas aos gritos, aos empurrões, e ato contínuo bateu a porta, girou num risco o chão empoeirado, quase derrapou na valeta do outro lado da a estrada, e foi o fim.
Paradas diante do grande portão cinza e enferrujado, uma delas se perguntava como explicar à patroa aquela perdição, o sinistro, o acaso (talvez não soubesse muito bem o que era o acaso), essa forma de agir de alguns animais urbanos.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Na saída da última sessão de cinema


Quando chegamos, a placa de "vendido" estava presa ao lado da porta de entrada. O antigo prédio do Cinema Aurora (era este o nome?) estava à venda, e agora.... deixaria órfãos os habitantes desta cidade. Onde o roçar? Onde o escuro? Onde a mão caminhando por ínvios caminhos? Onde todo mundo se conhece, e em cada canto escuro do cinema uma história, um palácio, o melhor lugar para o anônimos desta pequena província. Até hoje, eu havia namorado ao acaso, nos meandros das sessões vespertinas da grande sala, algo em torno de quinze garotas.
Agora ela: a garota que ao meu lado caminhava de mãos dadas com o fim.
A última sessão de cinema.
Ela nem viu a placa.
À meia-noite encerram as atividades. Nessa hora, depois de hora, convido-a para sair da sala. Alcançamos a rua. Entro, ligo a caminhonete e já tenho a cabeça em outra cidade. Deixo-a na calçada, olhar perplexo diante do meu aceno, de minha arranca, mas principalmente deixo tudo, porque essa era a última chance de eu ser um grande homem.
Mas quando a sessão se encerrou também no retrovisor de minha caminhonete, e as luzes foram ficando há centenas de metros daquele grande prédio atirado, lembrei que um dia eu ainda visitaria o prédio, adiante outra igreja ou estacionamento, e dela (a garota) eu lembraria.
Na saída – lembro – suas mãos estavam suadas e agarravam mais forte as minhas; não adiantou.
Hoje foi a última vez – isto prometi para mim mesmo.
Foi como um silêncio – o último
A última luz que se apagou.
Sigo no carro em que ela não entrou; sigo nas memórias. Adiante as luzes do semáforo me avisam que esta é o último sinal. Depois é só estrada, destino, mas para onde irei?
Estou saindo pelo estrada.
Preciso mudar de cidade.
E arranjar uma garota mais atenta.