sexta-feira, 16 de julho de 2010

Rolo cheirando a saibro


O primeiro encontro foi no clube. Caminhava em meio às veredas, trilhas, árvores, bancos, acessos, quadras. O silêncio acompanhava sua leitura (livro agarrado às mãos); pessoa nenhuma ele via, nem cumprimentava, tal a concentração nalgumas páginas lidas durante o exercício regular, duas vezes por semana, nas alamedas da associação atlética daquela cidade. Dois anos morando ali, nenhum conhecido; o título social como última tentativa de encontrar parceria para uma conversa. Mas como? Ele, um eremita de solitárias leituras feitas pelas sombras das altas árvores do clube, sempre caminhando de cabeça baixa, acompanhado apenas o rastro abaixo e pelo frio de um dia de outono que o envolvia, enquanto ao seu lado vinham gritos das quadras de tênis, onde o esforço individual de superação de uns era, para ele, tão improvável quanto vão; caminhava, lia e nada ele absorvia ao redor do seu mundo fechado.
Um dia, num quase tropeço, avistou o rolo. A pequena estrutura metálica era formada de uma caixa que media algo em torno de sessenta por sessenta centímetros, deixada ao lado das quadras de tênis. Tinha dois pequenos rolos embutidos, e o encardido de saibro cor brique cobria o mecanismo e dava um aspecto geral ao aparelho de algo muito utilizado. Caminhada após caminhada, ali passava e o aparelho sempre lhe intrigara. Para que serviria? Na falta de coragem para perguntar ao funcionário que cuida das quadras de tênis, o mistério perpetuou-se por dias, longas caminhadas, extensas leituras. Dia após dia.
Até antes de ontem, o dia do primeiro encontro. Havia alguém em cima do aparelho. Com as mãos apoiadas no muro lateral, um homem passava seu calçado esportivo no rolo, repetindo a seguir o mesmo movimento com a outra perna. Arrastava o planta do pé de uma maneira que, rodando o rolo, movia a água depositada dentro da caixa (agora descobria a água dentro do aparelho). Parou, e curioso ficou a olhar o caldo escuro sendo girado. A pergunta lhe foi inevitável:
– Serve para que isso?
O suor a descer pelos braços esculpidos do outro, a roupa branca, as meias encardidas na altura do tornozelo, era um típico jogador de tênis e ele sorriu de uma forma que lhe pareceu leve, pois leve o outro respondeu:
– É para limpar o saibro que fica grudado no tênis depois do jogo. Não sabe?
– Nunca joguei o tênis.
– Está na hora de começar.
Era um convite. Houve silêncio. Seguiram-se lentos olhares de um lado; vasculhadores cantos de olho do outro.
Preso às mãos, o volume, a leitura, a concepção de tudo: aparência e essência. Nos contos de Machado de Assis, o homem vive a aparência de um espelho que mostra o que se quer ver, mas na essência esse mesmo homem se movimenta por caminhos escuros, por interesses obscuros, soterrados, profundos. Olhando o volume, o primeiro homem continuava parado, travado pelo convite (que ele sabia ter escutado), e perturbado pelo enredo que poderia levá-lo a atitudes para além das quadras, dos limites sociais do clube. E enquanto o diálogo restava travado, o livro, vício antigo, era ali um estranho ao contexto e ao lugar, e em si já bastante deslocado daquele diálogo defunto, a morrer na falta de ação, na falta de resposta, porque os dois permaneciam parados; e ainda mais estranho era o livro que continuava aberto em suas mãos, na página tal, tal era o nervosismo do dono a agarrar-se na falta de sentido da pergunta idiota – agora feita, e agora é tarde – pois somente um neófito das quadras não saberia para que serve a pequena engenhoca...
No chão, a cor do saibro; ao fundo, urros sufocados vindo de outra quadra onde uma partida era disputada até o último suspiro. Braços em movimentos, gritos sufocados, movimentos de uma manhã qualquer num clube qualquer. E as raquetes, símbolo de força e disputa ao fundo, tinham aqui a forma de uma disputa de olhares. De perguntas.
Entre os dois, alguém recomeça o diálogo pensando num próximo encontro.
– Quem sabe um café?

* * *
Ao leitor pouco importará saber quem fez essa pergunta, ou se houve olhares acompanhando mãos suadas, ou se o céu estava azul e se debaixo dele havia uma linda manhã de outono. Basta saber que alguém sacou, e quando alguém saca o jogo começa, e tudo são andamentos a partir de então. O homem por vezes é resumo dos seus instintos, mas é também o intestino do próprio homem. E se sabemos hoje que vidas correm perplexas e desamparadas nas áreas sociais da vida, nas páginas de Machado alguém sempre estão a dissimular algo, alguns fugindo de dívidas, outros a caminho da roda dos expostos, enquanto aqui fora, no mundo dos olhares semicirculares, no riscado mundo da imaginação daqueles dois, demarcado estava o uso dos mecanismos instintivos de sobrevivência; ambos já haviam iniciado seus movimentos em busca da luz, porque o céu estivera azul e era aquela uma linda manhã pueril.
O dia do primeiro encontro.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

As folhas de Pedrinho

É duro ser uma folha. Atirada, como estão essas outras folhas no meio de cadernos amarrotados, apertados dentro de uma pasta engasgada de um aluno do terceiro ano do primário, esta é só mais uma das tantas folhas desenhadas pelo pequeno Pedro, filho do outro Pedro, o pai. É um belo desenho no meio da mesmice de uma produção textual gazeada, hoje à tarde, em sala de aula, em troca de uma linda paisagem desenhada: o pai chegando em casa, som de buzina nas duas sílabas de um fom-fom, a casa colorida, ao fundo, árvores ao lado, o filho e a mãe em frente à casa esperando o pai, os sorrisos largos, bem diferente desta outra cena: o pai jogando todo o material do filho no porta-malas do carro, na entrada do colégio, no final da aula, da tarde, do mundo, e na pressa do mundo de quem nem sabe por que está com pressa, e atira-se a correr, a acelerar, em marchas longas e por curvas mortas, esquinas muitas que já conhece, e desconhece, e vira aqui, buzina irritado, já sabe, vira ali, freia lá, até o Pedrinho já sabe que todo o seu material vai se esgoelar lá atrás, na mala. As folhas, os desenhos da tarde, estes serão apenas passas esmagadas. Serão passado.

No banheiro, o desenho colado. Faz anos, o filho já foi embora. Ficaram os desenhos, mesmo amarelos e amarrotados, eles agora preenchem o vazio de toda esta casa: a mulher, longe dos gritos e impropérios; o filho desistiu do mau humor generalizado. Sozinho ele olha o desenho, as pareces opacas, e nelas o molhado, aqui passado. Leva a mão à parece na curta tentativa de acariciar o desenho, mas a folha lhe cai, gruda-se ao chão encharcado deste banheiro solitário e masculino – e borra.

É apenas mais uma folha caída, como velhas árvores depois dos verdes anos, como memória que se apaga.
Era mais uma das folhas do caderno (e da pasta) de Pedro (lembra da pasta e do carro agora), quando o filho ainda era Pedrinho.
Não mais.

No banheiro, o pai apanha a folha, luta contra o elemento mineral que apaga suas lembranças, e ele chora, molha mais uma vez a casa que era (um dia foi) colorida; chora e vê as duas almas desenhadas, abanando, um olá de quem o esperava.
Agora não mais.