quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Exposição

Mexe no cabelo. O casaco abriu e fechou inúmeras vezes. Sapato, ela bate. Pode-se ver, é uma bota. Tem ainda a pintura. Destaque. Dele. Talvez haja entre eles o silicone. Farto decote a balouçar entre os espaços desta sala em que poucos, a essa hora da manhã, trabalham. Então ela fala, e fala. A voz agora soa lhe familiar, e ele, o outro em sua mesa estratégica lembra. Foi só ontem à noite aconteceu a descoberta.
Amigos. Carros. Bebidas. Todos os clichês – inclusive ela. E na chegada à Casa dos Prazeres Proibidos, o inconveniente de encontrá-la tão solícita, tão outra, tão viva. E ainda ela.
É Thaciane, a estagiária.

Orestes, o chefe, é agora um cemitério de piedade. Rosto ríspido. Entendimentos contábeis. Escassas palavras. Gestos. Pontes. Olhares. Sim, ele já prometeu, para si e para todos os santos, que hoje ele não vai olhar.
Só hoje.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Julgamento divino

Na saída da estação de trem, alguém vestido na importância de roupas executivas esbarra em mim. Sinto respingos em minha roupa. Descubro que vieram da lata que ele traz dentro de uma sacola de plástico debaixo do braço. Pelo cheiro logo identifico: cerveja. São dez horas da manhã.

Entendi-me como o profeta das causas duvidosas. Aconteceu agora a pouco na beira desta larga avenida onde cruzam ônibus anônimos e outra porção considerável de cidadãos idem, carregados de pastas, pouco humor e quase sempre apressados. Foi quando da massa surgiu à minha frente um sujeito que vinha correndo, gritando enlouquecido:
– É o capeta! O próprio Satanás.
Dizia isso e apontava para um sujeito alto, esbelto em seus 50 e poucos anos de vida, certa barba alongada e um decidido ar estático, lá adiante, parede, muralha, atrás da multidão (corrente), e ali parado ele mais parecia um complemento ao calçamento de linhas duvidosas desta avenida feia e com tanta falta de compaixão. Não consegui tabular conversa com o apocalipse de suas palavras.
Deixou-me com a mesma velocidade com a qual antes chegara. Ainda puxei seu baço, calcei outro tanto de atenção. Nada. Tudo foi em vão – e ele sumiu na multidão.
Única coisa que reparei: tinha o cabelo engomado, o terno já era puído, o sapato gasto e a Bíblia presa na mão. Já ia aos berros, correndo adiante, boneco saltitante repetindo:
– É o capeta! Satanás!
Adiante, concentrei-me no encontro que se aproximava. Afinal o Cruz-Credo tinha sido anunciado, e não é todo dia que se pode ter um encontro informal com tão ancestral criatura.
Foquei melhor. Pareceu-se – e de fato era – Mestre Ricardo, meu antigo professor de Filosofia.
Chegou dizendo:
– País de analfabetos, meu caro. O cidadão não pode carregar um livro na mão que alguém já nos tira para Nosso Senhor, O Pastor.
Suspirou, e lembrei-me recordar da velha impaciência do mestre em sala de aula, ali agora a comentar a pobreza de espírito de nosso povo – cada vez mais inculto e feio – era possível comprovar ao redor.
Baixinho, como quem se confessa:
– Viu aquele? Saiu gritando, me chamando O Demo. Pensou que eu era pastor, e pra quê, se ele só me xingou? País de analfabetos!
Olhei o livro que tinha em mãos: O julgamento divino. Sim, era um romance.
Nada pude dizer. Tal como o fanático que cruzara por nós minutos antes, também ele me deu as costas e partiu embora, em passo lento, a cabeça a balouçar. O que estaria a pensar o velho mestre?
Ao longe, ainda pude ver seus cabelos grisalhos, longos e desalinhados, a mão esquerda segurando a velha maleta dos tempos da universidade, enquanto na outra, firme e agora em riste, a “bíblia” arranjada. Por um minuto, ele me pareceu figura amarrotada e encardida como são certos pastores evangélicos em seus transes continentais.

Não consigo esquecer aquele engravatado e sua religião em lata.