quinta-feira, 21 de junho de 2007

Silêncio

Entro na sala, e mais uma vez, percebo o silêncio do pai. É um silêncio barulhento, cortado por gritos de tira os teus sapatos sujos! não faz barulho, menino! O silêncio do pai é assustador. Quer dizer, primeiro é um silêncio sem palavras, longos dias esperando a sua volta; depois fica insuportável, o barulho da tevê, seu humor.

Aqui em casa, as tardes de domingo são do pai. Eu entro na sala é de metido. Estou dizendo isso porque neste dia a tevê fica para o pai. Entro e lá estão os três, ele, o sofá e o aparelho. Uma conversa de surdos, porque o pai aumenta o volume do televisor toda vez que alguém vem atrapalhar. Quando entro, ele não conversa, só grita, depois é o silêncio, uma espera sem fim. Ausente de casa nos outros dias da semana, tornou-se um estranho para nós. Chega de viagem sábado à tarde, depois da última entrega, vai para o bar, joga cartas com os amigos, bebe, vem para casa, come, dorme. No domingo, a tevê é só dele.

O silêncio do pai é como o sofá em que agora me sento. A gente não consegue conversar, eu e o sofá. Ouço sua reclamação, ao sentar. Fico quieto, agarro-me ao conforto do estofado, ao seu pouco carinho, patrimônio da sala, esquecido, amarrotado. Sentados, somos dois paralíticos diante do homem da tevê que não pára de falar. Diante de nós ele dá risadas de piadas chatas, poderia ser este, ou outro, não faz diferença, o pai continuaria assistindo. O aparelho ficou ligado a tarde inteira, sem trégua ou concessão. Tento falar, avisar que o amigo chegou. Por que não me disse logo!?

Aos domingos, o silêncio e a rigidez do pai são quebrados apenas ao final da tarde, quando a euforia de algum amigo bate à porta de nossa casa e o convida para uma rodada na esquina.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Quando começa?

CRÔNICAS A MEU FILHO

As brincadeiras com meu filho de seis anos de idade deveriam durar apenas o tempo exato durante o qual os seus olhos, brilhantes e alucinados, e com a pressa dos que não têm mais tempo para perder, perguntam-me:
- Pai, quando começa a bagunça que a gente inventou?

A Menina do Gorro Cor-de-Rosa

Luana está chorando. No dia em que ocorre a apresentação do terceiro ano, ela está como uma rosa murcha no meio da platéia, e chora. Para os que se aproximaram e tentam animá-la (água em planta morta), ouvem a pequena Luana, paralisada e lacônica, contar que perdeu alguma coisa. Ninguém entende direito o que Luana está falando neste momento. Ela está segurando o vestido. Súbito, descobrem que ela está procurando algo que é seu e que agora perdeu. Não é fácil entender a menina. Suas lágrimas são como pétalas caídas, atrapalham, entrecortam sua fala. Na verdade, ela não fala, engasga-se na poeira de suas lembranças. De novo eles fizeram, sorrateiros, de novo eles foram chegando, um olhar de piedade. Ao seu redor, aglomeram-se alunos e professores que tentam consolar a menina de sete anos. O gorro caído ao seu lado faz a colega abaixar-se para apanhá-lo. Ela alcança para a menina que chora por um gorro cor-de-rosa surrado, provavelmente - todos acreditam – o objeto que ela perdeu. Não era. Luana coloca o gorro na cabeça e explica que está chorando porque perdeu o único dinheiro que tinha para comprar o lanche no intervalo.

A professora Maria Teresa está quase chorando. Foi difícil chegar até o dia da apresentação dos alunos da terceira série do ensino médio. Poesia, música e a leitura de seus contos. O programa dos seus sonhos. Um sarau músico-poético-literário com seus melhores alunos e prestigiado por toda a escola. Meses e meses de convencimento, ensaio e preparação. A difícil escolha dos talentos, do programa, da encenação. Depois veio a reunião do material a ser lido. A preparação do espaço. Iluminação, combinação de música, luz e cor. Cada detalhe pensado, e agora uma pequena menina de sete anos, despenteada e perdida no meio do salão, chora. Ela quer alguma coisa que se extraviou, ninguém sabe o quê, e por essa razão ela é agora o centro das atenções. Todos olham para a pequena menina de cabeça baixa e cabelos claros que segura o vestido como se fosse cair. Apanha o gorro cor-de-rosa que alguém acaba de lhe alcançar, e com as duas mãos de estátua, prende o gorro à cabeça. No palco, a professora Tetê decide pedir a colaboração de todos. Ninguém ouve, ela aumenta a voz. Odeia falar alto.

Luana começa a ficar mais tranqüila. A coordenadora do evento sabe do seu problema. Só não sabe dos meninos maiores. Jogaram o gorro no chão, chutaram, pisotearam, alguém devolveu, e agora ela não sabe onde estão os trocados que segurava minutos atrás. Ficou tranqüila depois que a professora lá na frente pediu para que todos procurassem o dinheiro perdido.

Maria Teresa pediu atenção, a platéia ficou parada, atenta e cordial. Por um segundo, todos procuraram a pequena garota no meio da multidão, depois uma agitação em busca do objeto perdido. O alvoroço atrapalha mais do que o choro da menina de gorro cor-de-rosa; por isso agora a professora está decidida que o melhor é pedir para que todos procurem depois, depois gente. É o que faz, é o que fazem. Todos param, ovelhas silenciosas, e voltam a seus lugares, sentam, o sarau recomeça, o sonho da professora Tetê está começando.

Luana não sabe, mas o choro dentro dela vai morrendo. Ela enterra o gorro na cabeça. Soca dentro dele toda sua frustração. Raiva. Ódio. Sentimentos que ela ainda não controla muito bem, por isso agora tudo está misturado. Em sua cabeça, a multidão de olhares lhe devorando; no rosto, o vermelho da decepção. Luana não consegue entender o interesse de todos, como também não entenderá, mais tarde, quando chegar em casa, entrar no quarto, tirar o gorro cor-de-rosa e perceber que o dinheiro foi deixado ali dentro. Mais uma brincadeira feita por eles.

Tetê ainda não sabe, mas a tragédia cotidiana vivida pela pequena Luana será a fonte inspiradora do texto que, à noite, sozinha em casa, e mais uma vez quase chorando, escreverá. Porque ela lembrará de um dia, aos sete anos.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Academia do Povo

CRÔNICA ESPORTIVA DA RECOPA

No princípio, toda crônica tem que ser elegante. Escrever periodicamente sobre fatos marcantes do futebol profissional requer, antes de mais nada, isto: requinte e sofisticação. Nem que depois termine em baixaria e puro coração. Afinal o povo é passional, e eu lembro muito bem de onde vim. De modo que a crônica que eu pretendo escrever hoje sobre a conquista da Recopa Sulamericana pelo Sport Club Intenacional começa assim. Com distinção. Por isso, o texto de hoje evoca o nome que para mim sempre foi objeto de nobreza, de história, um testemunho afetivo da ligação de meu time com as classes mais desfavorecidas da população brasileira – a antiga coréia – essas pessoas que fazem do futebol a sua vida. Minha crônica de hoje é sobre a Academia do Povo.

O nome justifica-se. Quero dizer com isso que a denominação não é coisa de hoje, tem história incorporada, e não foi dada por fatos recentes do futebol gaúcho (os tantos títulos nacionais, os três da Libertadores, os dois Mundiais e agora a segunda Recopa). Digo isso porque se hoje em dia o Time Mosqueteiro também consegue trazer para os estádios a nação rio-grandense, este fato é coisa recente num time que já foi protagonista do preconceito. Aliás, os gremistas reivindicam para si a “alma castelhana” do futebol brasileiro. A torcida argentina adora chamar os brasileiros de “macaquitos”. É isto? Sei não, para mim tinha muita garra sulamericana em campo ontem e eu não vi nenhum gremista por perto. Aliás, seria interessante mesmo que os torcedores da outra agremiação estivessem presentes no estádio e percebessem que a brasileirismo da torcida colorada começa pelo motor do time e da torcida: Pinga. As origens sócio-culturais da nação colorada e que fazem desta torcida a legítima Academia do Povo não começam com alma castelhana nenhuma; ela tem a volume temporal de páginas e páginas de uma dissecação ao mesmo tempo visceral, grotesca, intestinal e histórica de um clássico como “Viva o Povo Brasileiro”, obra máxima de João Ubaldo Ribeiro que muito explica nossas raízes e o germe das contradições que fazem a nossa diversidade cultural ser algo muitas vezes inexplicável. Exatamente como o comportamento da torcida colorada ao final do jogo.

Ontem à noite, portanto, no estádio Beira-Rio, o povo brasileiro esteve presente. Toda a diversidade cultural que vai de Índio a Pinga (dois maestros em campo) de Ceará a Sidnei de Alegrete (os extremos), passando por outros bichos de estimação (Pato, Perdigão), tudo aquilo era um pouco a síntese do futebol brasileiro. Não havia nenhum jogador em campo que empunhasse com perfeição a língua de Cervantes, razão pela qual nosso time teve que valer-se da liderança, do futebol e do Portuñol do capitão Iarley. O ex-jogador do Boca Juniors era o nosso único ponto de contato lingüístico com o povo sulamericano, numa clara demonstração de que os brasileiros sempre estiveram distantes dos habitantes que vivem do outro lado do Rio da Prata (excluindo-se, portanto, a República Cisplatina, parte do território rio-grandense por razões históricas e afetivas). A alma latino-americana do Inter passa pelo tricampeonato brasileiro, conquistado com Figueroa e depois com Benitez, não por acaso um chileno e o outro paraguaio.

Claro, tanta liberalidade, tanto frio, tanta empolgação com o terceiro título internacional conquistado pelo meu time em um ano fez com que ontem à noite Pinga fosse a grande atração do jogo. No futebol de um maestro em campo e na metáfora da descompressão total, bebemos todas. Só faltava este título. Sabedores, agora, os colorados, de que possuímos todos os feitos do time rival (menos o título da Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro – o Título dos Aflitos), os torcedores pularam e gritaram o jogo inteiro. Uns chamam isso de alma castelhana. Eu lembro que isso fez parte da história de lutas do povo brasileiro, dos Guararapes aos Farroupilhas, passando pela Balaiada, pela Revolta da Vacina e pela Chibata, chegando ao Contestado, este é o nosso Brasil: o da diversidade, o das revoltas. A maioria delas não levou a nada – a história é dos vencedores.

Ontem, unidos num tom só pelo passos do cearense Pinga, nosso maestro em campo, e pela bebida destilado produzida por aqui mesmo – o motor das arquibancadas –, o resultado só poderia ser aquele. Tanta euforia e alucinação acabaram em baixaria: a torcida estragou a festa ao invadir o estádio e impedir a volta olímpica, chegando-se ao absurdo (nunca vi em proporção tão grande) de minha própria torcida vaiar parte dela mesma. Coisas que só acontecem numa festa movida à emoção e puro delírio.

A conquista da Tríplice Coroa Sulamericana pela Academia do Povo.


Porto Alegre, 8 de Junho de 2007.