sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Gabo

CRÔNICA
Entro. O quarto é silencioso e tem o cheiro de nascimento, de uma espécie que logo reconheço: a dos recém-nascidos. As paredes estão decoradas com motivos infantis, e estes me lembram o nenê que um dia eu tive no colo e que hoje é um menino de seis anos. A luz do quarto é suave, e assim devem ser todas as coisas que estão ao seu redor neste quarto. Meus passos são cuidadosos, lentos, sobrevôo na suavidade da decoração enquanto, distraído, passo a mão na superfície lisa do berço, sinto as cores da decoração, e elas me transmitirem uma tranqüilidade que só ali poderia conseguir. O quarto, repito, está quieto. No berço, deitado, o pequeno menino dorme o sono dos inocentes. É Gabo, o primeiro filho do meu amigo.
Ele nasceu Gabo, assim foi chamado. Gabo nasceu Gabriel, e os dois nomes vieram junto comigo, até aqui balançando na cabeça – as sílabas, as vogais, as consoantes, eu quero dizer, porque a criança é uma só – a beleza é única, sua, agora nossa. A sonoridade das palavras, o efeito mágico delas reforçam o ser vivo que tenho diante de mim e que me lembram da pergunta que eu guardei para fazer aos pais da criança – os destinatários da minha dúvida. Por que o apelido antes do nome? Por que o nome preso ao apelido? O apelido girando no mundo, sua força só, e agora, inconteste, traz em si o garbo da beleza própria. Gabo. A pergunta que eu sei que jamais farei, porque sozinho entendi, afinal, que nos dias de hoje os pais são outros, os costumes se modificam com a rapidez de muitos bits por segundo, e que certas perguntas não se fazem. Os pais deram apelido – o apelido é deles, dele.
Gabo.
Apanho-o no colo tomando o cuidado dos cristais. A pequena criatura dos meus encantos sorri, um vento que corre a largura de um oceano (nele mergulho). É Gabo, o menino cujo nome tem a força de duas fortes consoantes mas que agora me evoca a beleza, a suavidade dos anjos. Do arcanjo Gabriel que veio ao mundo nos iluminar. Observo Gabo. A inocência dos movimentos lentos de seus frágeis dedos – um dia eles ficarão fortes e dominarão o mundo. O estado de paz em seu rosto onde um rápido sorriso ele deixa escapar – e numa fração de segundo memorizo o brinde como sendo só meu. Gabo. O menino que um dia será; correndo, pulando, a chutar mundo a fora, com garra e decisão, tanto bolas como adversidades, vencendo a maior de todas as partidas – o jogo da vida – o grande acontecimento de nascer como nasceu.
Lutando.
Admiro Gabo nos poucos minutos em que ficamos juntos, a sua capacidade de se aninhar como filhote ao meu braço – o pai que fui, serei e sou – de transmitir afeto e felicidade, a capacidade de me surpreender com a pureza de um sorriso breve, assim de soslaio, de canto de boca, como sorriem os recém-nascidos.
Gabo me encanta, abraçado como está nas tramas da minha provisória dedicação, vivendo os seus primeiros dias de vida na simplicidade que todos nós invejamos – o sono, o colo, a comida, o choro, e depois, como brinde, o curto sorriso, o prêmio máximo, aquilo que mais poderia esperar hoje, na minha primeira visita.
Este é Gabo, o menino que sorri a alegria dos pais e de todos nós.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Hora Certa

Ainda hoje passou mais um. Era meu avô. Quer dizer, eu sei que era meu avô porque ele trajava um terno de linho branco, sua marca registrada, a roupa que mais usava nos domingos e feriados. Eu me lembro de uma vez, uma foto num álbum da família. Lá estava ele. No dia do casamento dos meus pais, todos sorrindo e o velho Ademar na sua felicidade de fim de tarde nem aí. Aparentemente desleixado, vestia uma bela composição em que sobressaiam o chapéu panamá, a bengala e os sapatos lustrados, tudo em perfeito alinhamento; no paletó, via-se uma grande flor na lapela, e era como se pudéssemos ver as cores vivas no brilho sépia daquela fotografia antiga em preto e branco. Lembro também que me chamou a atenção o fato dele segurar na mão um copo cuja cor escura denunciava o destilado – sua bebida preferida a vida inteira.
Faz pouco, ele passou. Terno branco, todo alinhado e serelepe, o mesmo chapéu, o mesmo sapato, bateu pé, deu um pequeno pulo e abanou-se embora, seguiu em frente, corredor a dentro. Como se estivesse saindo de um baile ou casamento, trôpego depois das tantas doses ingeridas. Longe, aperta o estômago com as duas mãos. Deve estar com fome – suponho – ele tem uma fome de viver. Sentado, eu espero o próximo.

Depois das três horas da tarde e o movimento começa. Na entrada do prédio, onde estou agora, é um entra-e-sai de gente carregando pacotes, embrulhos, pequenas sacolas contendo lanches de toda a espécie.... Às quatro horas chega a pizza dele, o funcionário do décimo segundo andar. Será o próximo, mas ele ainda não sabe. Todo dia ele pede pizza de gordura e calabresa bem no meio da tarde. Não entendo o sujeito. Será que ele não percebe? É tão óbvio... O caminho se torna mais curto dessa maneira. Às vezes fico me perguntando por que razão ele faz isso: se é porque ainda não almoçou até àquela hora da tarde (um louvável trabalhador a serviço da repartição), ou se temos aqui um esfomeado quadrúpede da burocracia moderna dando mais um passo em direção aos ruminantes.


Alguém passa em seguida. Pude ver: é a minha namorada da quarta série. Quantos anos... Como era o nome dela? Mas como vou lembrar disso tudo, o nome de todos? Nunca mais a vi depois do ocorrido. Só lembro que usava o perfume dos mortos no dia em que nos encontramos pela última vez, e se digo isso não é porque a conheci num cemitério, mas porque não havia outro cheiro possível lá. Quer dizer, foi ela quem me reconheceu depois que todos foram embora. Chegou de mansinho, chutando as folhas depositadas no chão, usava vestido solto, a pele estava branca, caminhava numa calma exagerada para o lugar (me deu uma agonia) olhando uma e outra indicação; chegou e foi dizendo: Te conheço de algum lugar. Me deu um frio (o lugar, a forma como ela apareceu do nada). Disse e foi embora. Deixou no ar aquela essência de copo-de-leite nas palavras. Agora ela passa aqui sem pressa, sorri e sai caminhando em direção ao corredor vazio. Quando resolvo olhar já é outro corredor, vai ficando estreito e silencioso, tudo cinza e quadriculado, em compartimentos iguais, o cheiro de vela, de flor murcha, uma solidão o lugar. Mas é sempre assim – ela foge. Fica o aroma doce e enjoado de seu perfume, a frieza de seus movimentos lentos, um gosto de laje nas palavras, um cheiro de terra ao redor, a falta de vida, e então eu já não estou mais sentado no meu antigo posto de trabalho – a portaria – estou deitado. Absolutamente frio, flutuo no inconsciente rígido desta lembrança, e enquanto agonizo aqui deitado, cavando esses pensamentos, vejo que todos foram embora e ninguém veio deitar ao meu lado. O lugar é frio.


Às quatro horas, ele desce. Vem buscar a pizza. Fico olhando como traz consigo o olhar dos famintos, ao mesmo tempo em que sinto fome dentro de mim (eu quero viver, mas este buraco na minha barriga parece um vau, precipício que não tem fim, e ele grita, implora, escraviza). Por ele passa todo meu delírio, minha esperança (eu tenho muita fome), a sensação de que estou vivo porque tenho fome. Ela vem de longe, é uma fome antiga, de muitos anos – eu era pequeno e ela se foi – nunca mais pude perguntar. Tem gosto de antigas festas, de linho, de amor, de afeto; é uma fome feita de sonhos, lembranças, a vontade de tê-la de volta, rodando sua saia ao meu redor, numa praça, no pátio, na escola. Estou deitado, tudo gira.
A fome atrapalha minhas idéias, a compreensão das coisas, e não vejo quando ela passa. Todos os dias eu venho aqui esperando encontrá-la. Desde o último dia em que nos vimos, fico esperando sua volta. Mas as lembranças me confundem, as cores dançam à minha frente, o branco, a flor na lapela, o copo na mão do meu avô, e daí eu me lembro que havia muito vermelho no dia em que deixei minha esposa pensando nela. E havia um copo. Ela chegou em casa, abriu a porta do apartamento, entrou no banheiro e me encontrou mergulhado num rio vermelho. Perguntou o que era aquilo no copo, e hoje eu só consigo ver o branco; as pessoas estão pálidas, os corredores não têm mais fim, um frio antigo me invade, sinto fome. Todos passam e me deixam aqui. Venho por vontade própria, fico sentado na portaria durante o resto da tarde, ninguém me incomoda, observo o movimento, vou embora. Sei de tudo que acontece, mas as únicas coisas que me interessam são as pessoas e a comida. As pessoas já não podem mais me incomodar, e a comida é boa. Quer dizer, o hipopótamo vem, carrega o lanche, sobre doze andares, come tudo sozinho. Mas não importa; daqui a pouco ele estará aqui comigo, na hora certa.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Enquanto agonizo

PROJETO DE RESENHA

Gostaria de escrever um dia sobre um livro fantástico, que me perturbou bastante e com o qual muito aprendi. Falo de Enquanto agonizo (As I lay dying), romance de William Faulkner.

A multiplicidade de narradores. O rumo das personagens. Os diferentes pontos de vista. A história narrada como um patchwork a ser montado pelo leitor, ora avançando, ora retrocedendo. A completa perturbação psicológica das personagens. O destino infame das insanidades flutuando na voz dos narradores. A fragmentação completa da ação revelando o grotesco de situações absurdas e demasiado humanas. O fluxo de consciência rumo ao desatino, feito destino, sina, decadência. Enfim, tantas as observações que poderiam ser feitas... Desisto.

Gostaria de um dia poder escrever sobre esse livro.