segunda-feira, 30 de março de 2009

A sonoplastia da jogada erguida

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

É papel da crônica esportiva especializada informar o torcedor. Sabemos, porém, que nem tudo que acontece em campo vira informação. Muitos pequenos eventos passam longe das páginas de jornais, do replay da tevê e das crônicas de rádio. Muita coisa passa em branco, mesmo que seja sonora, barulhenta, ou para entrarmos no assunto de hoje, possui sonoplastia própria. Evidente que não me refiro às tecnologias de captação de áudio, tão comum nos esportes (e me vem à lembrança o tênis com seus jogadores solitários a gritar...). Falo aqui dos gritos que ninguém escuta, excluídos, por certo, os xingamentos aos parentes mais próximos do árbitro. Falo do futebol amador, onde não há ninguém apitando, onde o único solitário é o goleiro, onde a integração coletiva é de uma polifonia que muito me lembra agora os esquemas narrativos de William Faulkner e seus múltiplos narradores. Enquanto agonizo é um bom exemplo disso, tanto na obra do norte-americano como no sofrimento em campo. O jogo é uma sequência de agonizamentos. O jogo é gritado.
O jogo do último sábado. Novamente lá estavam reunidos nove (número cabalístico), os Sentinelas, os homens de confiança escolhidos pelo nosso Alto Comitê Executivo de Organização do Futebol dos Sábados (ACEOFUS), braço direito e não-armado da COFLOB – Confraria Futebolístico Literária Olavo Bilac, organismo que em comum com o seu honoris founder tem apenas o parnasianismo do futebol. Foram esses nove heróis que deram continuidade ao ano de esquisitices futebolísticas da Coflob ora iniciado. E para surpresa geral da nação, fizeram um jogo muito bom de ser jogado. E gritado. Além de pegado, o jogo foi recheado de Som e Fúria (outro livro de Faulker que eu recomendo, porque entre os narradores há um débil mental). Aliás chamou a atenção no jogo de sábado não a capacidade mental de alguns, mas a vontade de gritar. Faulkner é mais real que o jogo que vimos. Isso enquanto agonizo.
Claro, existe uma explicação para tanto grito. Alguns, porque querem provocar os outros. Outros porque querem ser provocados para se sentirem mais motivados. Os primeiros são os corneteiros de sempre; o segundo grupo é liderado pelo goleiro-falante, mais conhecido como Marreco-caneleiro das Traves, porque está sempre a berrar. Existe, porém, alguns atletas que exigem trilha sonora de primeira. Dolby stereo. Gritos e Sussuros sem intervalo comercial. E feito um drama bergmanniano, um autêntico jogo de xadrez emocional, alguns jogadores da Coflob gostam de demarcar bem suas jogadas aos gritos. Seja exigindo faltas imaginárias, sejam orientando o bom posicionamento da pátria, seja simplesmente narrando o que acontece em campo (o Louco de Cati das traves) , ou finalmente seja garantindo a perfeita sonoplastia da jogada perdida. Foi o que aconteceu aos não-sei-quantos minutos da fase final, quando o artilheiro Asterix (se bem que poderia ser o vizinho, o gordo comilão aquele) avançou e da intermediária desferiu um golpe na bola (alguns não chutem, desferem golpes) arremessou a belezura para os quintos da linha de fundo, chutando a bola não em direção ao gol, mais em direção à bandeirinha de escanteio. O chute foi acompanhado de um medieval grito pré-histórico, e se confundo as fases históricas é justamente para mostrar o desarrazoado de algo tão injustificado, pois foi só um chute para longe do gol... Foi um grito erguido das profundezas da alma, de uma forma tão prehistoricamente gritado, como se fosse aquele chute tivesse se perdido na Idade das Trevas.
Realmente, o jogo é assustador.

Porto Alegre, 30 de março de 2009.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Um segundo

Foi somente quando ela diminuiu as luzes, acomodou suas partes no prumo dos lençóis, olhou-me com sensualidade adquirida a poucos contos e reunida na enérgica curiosidade dos que se conhecem na esquina de trás (e que nunca irão se conhecer) que ela veio em movimentos lentos, veio se rindo toda por dentro e por um rastro de segundo foi me perguntando Quer dizer que você gosta de gordinhas? foi só então que eu percebi o engano de aparentar compreensão.
Olhei as notas. O meu senso prático e organizado em exposição permanente. Empilhadas, eram duas notas graúdas dispostas na cabeceira da cama que eu avistava atrás de seus ombros paquidérmicos. O tempo, eu tinha pouco tempo; do teatro, pouco sabia.
Foi um segundo rápido a percorrer galerias, incitar muitas perguntas e outras tantas dúvidas, e poucas culpas, tudo solto em minha cabeça, tudo rodando dentro de um rosto que espera, o olhar preso na parede e na resposta deste que olha e não vê, deste que vê e tem a sensação de que está sozinho e de que nada havia naquele quarto além das promessas pagas em duas notas.
Elas me foram suficientes.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Rio Soturno

Parou a camionete, o motor enfim entregue ao silêncio da natureza. Olhou para o lado. O vidro sujo, os restos da estrada e o barro atirado pela rodas do estradeiro, do velho Jeep em que estava assentado com seus pensamentos, tudo isso dificultava a visão do rio. Mas ele estava ali, próximo, correndo, silencioso, rasteiro, guardando algum mistério. Talvez escondesse algo que Luís, o motorista ali parado, não conseguisse ver, mas intuía. Seu espírito aventureiro, tão elogiado dias atrás pela diretoria do Clube dos Jipeiros, estava, afinal, prestes a descobrir porque o Rio Soturno levava aquele nome. Era uma descoberta, e era preciso uma descoberta para ganhar o cobiçado certificado de aventureiro do clube. Faltava um único ato, identificar e informar ao mundo que um lugar inóspito e não explorado fora descoberto. A paisagem, contudo, transmitia calma; a noite caminhava no céu áspero e os últimos restos de vermelho refletiam nas águas escuras do Soturno. E mais uma vez Luís pensou na inferioridade de ser um jipeiro há tanto tempo e há tanto tempo ainda não ter descoberto nada.
O rio, calmo, escondia em uma de suas curvas, lá adiante, um pequeno casebre, àquela hora ainda às escuras. Sentado na frente da varanda da pequena casa, podia-se ver, mesmo de longe, um homem. Era a oportunidade.
Ligou o carro, e o ronco do motor espantou o silêncio e toda a vida ao redor. A revoada não distraiu o jipeiro. Lento, ele foi movimentando aquela estrutura metálica e fortificada, não demorou para encostar ao portão da casa. Tudo ali era de uma decadência assustadora. A chegada da noite não apenas acentuava as cores pálidas do cenário como escondia o rosto do velho homem sentado no vazio de um banco. Diante das águas do Soturno, fixo, ele olhava.
As boas-noites foram lentas, e as palavras seguintes, sobre o tempo, o fim da tarde, a noite, resumiram-se quase que tão-somente às perguntas de Luís e ao sim, ah-rã, talvez do velho senhor. No momento certo, angustiado pela chegada da noite e pelos monossílabos do outro, Luís precipitou a pergunta.
Um raio cortou o céu no mesmo instante. Resposta não houve. A chuva caminhava. E no minuto seguinte, mesmo que os minutos fossem dias naquele sopé de mundo, o homem sentado levantou-se, apanhou o que parecia ser uma mala ou valise, cruzou pela ansiedade de Luís e pelos faróis acessos do Jipe, cortou a estrada, e num vão da mata, entrou rio adentro.
O farol da direita piscou; era bem possível que a lâmpada, entregue aos dias de procura, queimasse antes de retornar à cidade. A estrada era longa, sinuosa e o silêncio escuro do Rio Soturno acompanharia Luís e suas perguntas.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Hei de te esquecer

(Hoje)
Hoje, passeando por paisagens conhecidas, antes navegadas, correndo meus dedos na impaciência do brilho falso de nossa mesa de reuniões, eram os meus olhos que mergulhavam na memória de outros passeios, estes pretéritos, recolhidos e perfeitos, atrás, meses de procura, de encontros em ambientes fechados e agora esse circuito compacto de olhares alheios a nos vigiarem, é ali que meus dedos escorregam pelo declive de sua geografia repisada, memória estacionada, balanço de outras passagens, desafios, abraços, tropeços, afetos, tudo recolhido à minha frente nesse estreito limite de indecência e territorialidade, separados que estamos pelo tampo de vidro e dois assentos, neste instante então em que me vejo pasmo com a visão opaca do brilho morto dos cabelos dela, ao mesmo tempo em que me lembro da conveniência de ter dito não, outro dia, meses atrás, em outro lugar, quando finalmente me decidi e levantei e abri a porta e fui dizendo tchau, enquanto apalpava a lâmina fria que carregava no bolso, pronta como estava para ser usada em nosso último encontro, formalidade que cruza como um risco a fórmica desta mesa, pula da memória, cai desse passeio para territórios vizinhos, nos domínios dela, outrora meus, essa lembrança perturba o meu entendimento e não ouço nada ao meu redor, pois a dor na mente é como o toque da lâmina na mão que apalpava, minutos antes, o seu ventre improdutivo de mulher deitada, à espera, enquanto a esperam, então eu disse não e ela ficou deitada, a imagem de uma morte sem brilho deixada naquele quarto de hotel, agora ressurge à minha frente, mas é uma imagem sem vida, a lembrança de um reto equívoco, liso, escorregadio, porém passado e definitivo, pois apesar de seus olhos vagarem nas colinas do meu desconforto, este tormento me escapa, reflui, e consigo evitar seus olhos, evitamos, passeamos entre canetas e relatórios, olhares e desculpas jogadas na mesa, improváveis, impossibilidades ditas entre o desejo e a falta de coragem, a mesma de dizer não, e foi dito, e disse, e decidido levanto a mão e peço a palavra ao diretor.
(Eu hei de esquecê-la.)