sexta-feira, 29 de setembro de 2006

O Acrobático Higuita

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

Pouco sabe a crônica esportiva tradicional o quanto está perdendo ao dar às costas a uma das manifestações esportivas mais belas, emblemáticas e aguerridas do jogo da bola: o futebol amador. Um tipo de jogo fundado nos impropérios e impossibilidades, mas no qual, não há dúvida, corre muito sangue nas veias. O desconhecimento é completo. Poucas são as referências que encontramos nas páginas esportivas sobre o inacabado e imperfeito mundo da bola vivido, semana após semanas, nos campos de futebol amador. Digo “Amador” e a palavra aqui vai no mesmo sentido apaixonado do filme homônimo de Krzysztof Kieslowski, um pequeno clássico do cinema que mostra como a paixão pela sétima arte pode levar alguém à loucura de abandonar tudo para viver o sonho de realizar filmes num regime de exceção marxista imposto pela União Soviética à Polônia na década de 70. Tal como no filme, o futebol amador vive no campo dos sonhos – o delírio de acreditarmos que jogamos futebol – e essa magia a crônica “especializada” nem tangencia – está longe, muito longe, preocupada com as matérias “sérias” que vendem jornal. Dá as costas, portanto, à riqueza cultural contida no sentido vago das coisas presentes num campo de futebol, na pulsação ali vivida, o jogo emotivo e emocionalmente válido que se desenrola nas centenas de partidas de futebol amador realizadas neste país toda semana. A minha crônica hoje é sobre esse campo dos sonhos.

A partida de futebol que jogamos ontem. Quem em sã consciência não terá visto ali, ontem à noite, uma bela partida de futebol. O sonho, a realização suprema de todos que estavam lá, mesmo os que perderam no placar. Jogar bem. Sim, todos viram que jogamos uma bonita partida de futebol amador. Mas, o que é “ver” quando se joga com a força e a paixão? O que é ver quando você é o cronista do absurdo é só consegue enxergar os movimentos sísmicos em campo, o inusitado das coisas. O delírio de acreditarmos, como acredita cada um de nós, que a partida teve esse “desenvolvimento harmônico das forças produtivas” (ih, olha o marxismo) por obra e graça do desempenho individual de cada atleta; como se o jogo fosse um espetáculo, uma ópera, ou como se todos ali desempenhassem algum papel na beleza pura de um balé realizado com belas jogadas e gols. Este é ponto. No futebol amador todos acreditam dar o melhor de si em campo – sangue, suor e lágrimas – não que seja violenta a partida, mas é que jogamos com o coração preso à bola; abraçamos o vento no impulso da corrida em direção ao gol; mordemos a bola, arrancamos grama com as unhas, deslocamos a trave se tudo isso for mesmo necessário; por vezes, é.

Então ontem, ali postado embaixo das traves, do ponto de vista privilegiado de onde vejo o jogo, uma bela partida de futebol se desenvolvia em campo. Até que um meio-campista do time adversário experimentou um chute de longa distância, como se não confiasse na mão do goleiro. O testador de goleiro chutou. E a bola veio em minha direção, foguete russo durante a invasão do Afeganistão, viajando no meu delírio – o medo do goleiro não é diante do pênalti – e em sinuosas curvas, doideira, toleima, ela foi chegando, e quando a bola já estava a dois palmos do goleiro, eis o inusitado. O sonho. A acrobacia tão esperada – mas quem pode “esperar” alguma coisa de um goleiro tão instável emocionalmente? – e num movimento digno do melhor balé, algo acrobático, lembrando aqui o lendário goleiro colombiano René Higuita, que defendeu de costas, com os pés, um chute, o nosso goleiro, este cronista, ao invés de dar um simples passe para o lado e espalmar a bola, ele levanta a perna, e num estranho golpe de karatê expulsa a redonda para a linha lateral.

Ele, sempre ele: hoje, ontem e sempre. O acrobático. Nosso Higuita é o personagem de hoje.


Porto Alegre, 29 de setembro de 2006.

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Ilha das Batatas


Terceiro dia seguido que aquilo acontece. Naquele ponto, num ponto bem específico, numa frase, ou palavra, localizada sempre no mesmo ponto do livro, alguma coisa estranha acontece que muda o rumo de tudo, e eu de repente me vejo na Ilha das Batatas. Tudo é muito rápido. Dez minutos ali, deitado, luz de cabeceira que vai se apagando, a leitura pausada, e os sonhos do meu filho vão lentamente amortecendo o caminho e o ritmo da leitura que faço ao seu lado. E quanto mais avançamos juntos na leitura, mas percebo que vou mergulhando nas cintilações daquela história, no ritmo daquelas frases; e que de repente estou buscando, ao lado do protagonista-aventureiro, encontrar a Ilha dos Diamantes daquela narrativa judaica. É uma Ilha mágica, em cuja areia avistamos o brilho mazar da tão cobiçada pedra preciosa; e quando menos percebo, sem mais nem menos, sou eu quem está dentro da pequena embarcação, descendo, alucinado, correndo pelas areias escaldantes, e tropeçando na tão sonhada riqueza da Ilha dos Diamantes. Estou empurrando algo, isso é estranho.

Tem um momento que aquilo sempre acontece. Sei, é ali. Então quando no desfecho daquela história infantil, é mostrado que um homem simples e humilde (alguém que buscava riqueza para sua família) encontra uma ilha cheia de diamantes, e que lá, ao deparar-se com seus habitantes, descobre que para eles a coisa mais valiosa não são diamantes, mas batatas, uma estranha inversão de valores se apodera daquela fábula. E, ao invés de diamantes, são batatas que o pobre homem acaba trazendo para casa – para desespero de sua mulher – ainda que no mesmo saco venha junto uma porção de diamantes para resolver a fábula. Nesse momento acontece, e me vejo então chegando em casa com apreensão e batatas.

Acontece ali. E assim à medida que vou contando aquela fábula infantil para o meu filho, alguma coisa estranha acontece. Eis então que me vejo caminhando pelo supermercado e chegando à “ilha das batatas”; e é quando encho o carrinho de compras com quilos e quilos de batatas que acordo e descubro que estou sonhando que estou na gôndola de legumes do supermercado e que minha mulher não vai gostar nada daquilo quando me vir chegando em casa com um monte batatas.

Fecho o livro, dou um beijo no meu filho e vou dormir.

domingo, 24 de setembro de 2006

Um pedaço inteiro de vazio

Na fila da casa de carne, fico parado, pensando na vida. A fila é longa; tudo isso vai demorar muito. Paciência. Tenho tempo até eles chegarem. E eles sempre vêm. Domingo é dia de churrasco, e não tem jeito: sou eu quem compra a carne.

Vazio. Acabo sempre comprando a mesma carne: um pedaço inteiro de vazio. Não sei se é pelo insólito e curioso nome que tem esse corte do gado, ou se é pelo que a palavra me evoca, no momento, mas o fato é um só: encarregado do churrasco, compro sempre o mesmo tipo de carne.

Vazio.

Tudo que a palavra me evoca, lembranças, as coisas que ele me faz pensar, recordar, viver de novo, como se existissem para sempre, ali, parado na fila da compra de carne como se fosse mesmo eu o gado a ser abatido, tamanho o meu abatimento. Sim, fico assim, lembrando os finais de semana que costumávamos nos encontrar, pessoas, coisas ditas, palavras sem sentido..... O vazio de estar rodeado de gente e sempre alheio a tudo, a todos, as pessoas me perguntando: "o que você tem?". A festa, aqueles encontros em família cheio de motivos mas sempre em torno do churrasco de vazio, às vezes picanha, um pedaço de maminha.... Os nossos churrascos. Aquela fartura de gente, de carne, hoje, aqui nessa fila, são somente ondas, vagas lembranças no empapado das areias de uma onda que bate em mim. Engraçado pensar isso, mas o vazio é a carne que mais me lembra coisas, pessoas, eventos, e é muito estranho que a chamem assim – vazio - nunca entendi o porquê – mas a verdade é que esse tipo de carne me evoca muitas coisas. Algumas pesados. O vazio pesa.

Agora, ali sozinho, na fila.

Todos os domingos a mesma coisa. Peço sempre um quilo e meio de vazio. Levo para casa. Preparo tudo. Monto a mesa, pratos, talheres, guardanapos. Espero. Gosto de esperar bastante. Não temos hora para começar. E depois que tenho a certeza de que ninguém virá – todos morreram, afinal – eu asso e como sozinho todo aquele vazio. Estufo depois, e durmo a tarde inteira.

A fila anda. O homem do balcão me chama.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

A Fortaleza Móvel

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

A tentação de todo cronista é criar um mundo em que todos mergulhem junto. Ele vive a angústia do relato auto-referenciado. O cronista é o louco mais disfarçado que existe. Quando escrevemos sobre uma partida de futebol, então, essa proposição ganha outros contornos. O cronista esportivo sempre quer explicar o que aconteceu no jogo, e alguns elementos dispersos da realidade estão lá para ajudá-lo: o placar, os gols, algumas jogadas e, para encurtar a lista, os torcedores à beira do gramado. A “Angústia” do cronista, assim, resume-se em ser fiel aos acontecimentos. Como se uma partida de futebol fosso algo concretamente explicável. Prefiro o fluxo de consciência na descrição da partida, porque hoje eu abri a primeira página do livro de Graciliano Ramos, e tem leituras que a gente não explica... Como não se explica, aliás, certos jogadores ocasionalmente em campo.

O jogo de ontem. Sim, é sobre isso que estou escrevendo. Como posso descrever o que aconteceu ontem, em nosso jogo semanal, quando uma roda viva interminável de jogadores e jogadas embaralhou-se à minha frente – eu sou o goleiro, sempre é bom saber para se entender a “angústia” –, pois do ponto de vista em que me encontrava era um moinho que eu via rodando em todos os pontos do gramado, um picadeiro de oportunidades inconclusivas, um ataque por todos os flancos sem a devida objetividade exigível. Quero dizer com isso que o jogo estava disputado, e se tem uma coisa que é ao mesmo tempo boa de se participar e péssima de se comentar é uma partida de futebol bem jogada. É um tédio para o cronista. Não acontece nada porque justamente aconteceu um monte de coisas. Como na Trilogia da Incomunicabilidade de Michelangelo Antonioni, o lento movimento das existências e a falta de ação é o que dá sentido à narrativa. No jogo de ontem, ação demais. Então eu me pergunto como sair desse delírio – o ponto de vista que um dia eu escolhi para descrever o jogo – o inusitado.

Para entendermos os olhos de pintor do goleiro cronista é preciso ver as peças da engrenagem. Os jogadores. Sempre tem um que ressalta aos olhos como um calção cor fúcsia (é bom sempre escrever “cor” porque ninguém sabe o que é fúcsia), ou qualquer outra excentricidade do gênero, e é esse que se destaca na paisagem e quase sempre passa a ser o protagonista do absurdo.

Ali. Diante dos meus olhos, ele circulava. O circulacionista. Típico jogador que só pode ser definido por uma palavra que (não adianta procurar) não existe no dicionário, cujo significado poderia ser traduzido como “o que circula”, ou seja, em palavras simples, o volante, o que (deveria) marcar os atacantes adversários, antigamente chamado “volante de contenção” (na bela imagem de que durante o jogo o volante é uma verdadeira “taipa de açude” a conter o time adversário), e se existem poucas letras que separam “volante” de “voante”, não terá sido apenas um exercício metalingüístico típico de Padre António Vieira nos “Sermões”; não, não terá sido mera coincidência. E digo isso porque durante todo o tempo que durou a partida de ontem o jogador-voador não fixava posição. Tanto que este goleiro, o narrador do absurdo, teve que orientar não só o jogador-maratonista, mas o seu time inteiro para chegar ao “posicionamento perfeito dentro de campo” (olha eu de novo escrevendo como um canastrão da bola) e foi assim que me deparei com ele: o circulacionista. O jogador que aparentava ser uma fortaleza móvel, tal a sua altura e movimentação ao redor do campo. Eu disse “ao redor” porque ele não se fixou em lugar nenhum, tamanha sua rebeldia tática. Então, aconteceu: ele não marcou. O jogador mais improdutivo em campo ontem é, hoje, o meu personagem. Aquela Fortaleza Móvel que ontem tirou o meu sono durante a toda partida.... Porque se tem uma coisa que eu gosto de fazer quando estou jogando com os meus amigos é sonhar.

Deve ser por isso que a bola passa ao meu lado de vez em quando.

Porto Alegre, 22 de setembro de 2006.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Na Ferragem


Alguém está entrando numa dessas lojas de material de construção, que vende equipamentos elétricos. Uma ferragem. Entra e sabe que aquele é um lugar tipicamente masculino, como tantos outros que precisa enfrentar na vida. E sempre que entra ali – já sabe - aquilo sempre acontece: o seu índice de masculinidade aumenta consideravelmente. Deve ser algum mecanismo de defesa, talvez uma reação para impedir que os outros não se imponham na base da força física, a brutalidade que tanto lhe oprime. Precisa discutir isso com o terapeuta, quer dizer se voltar lá no terapeuta.

Agora, ali, na ferragem. Em busca de um simples combinado de fios e tomadas para uma instalação elétrica que precisa ser feita em sua casa. Um problema prático que precisa solução, afinal o eletricista pediu para comprar o material, e agora está ali. Na dúvida. Diante do balcão, esperando o atendente. A ficha de espera em sua mão recebe o suor frio. Dá uma última olhada para si. Escolheu a roupa mais dura que tinham em casa para vir até a ferragem.

O atendente. De longe viu sua chegada pela porta de entrada da loja. Esse atendente é calejado no ramo, há anos na profissão conhece as mais íngremes sutilezas humanas. Sim, conhece os clientes até pelo olhar, assim que surgem à sua frente, no balcão. Sabe, também, que mais cedo ou mais tarde algum tipo de pergunta idiota eles irão fazer. Sempre fazem. É praxe. Ainda mais a pessoa que acabou de entrar na loja. Haja paciência nessas horas. Esforça-se para ser gentil ao perguntar:

- O que vai ser?

Pronto. O atendente já veio com cinco pedras na mão. Desestabilizou tudo, o esquema de atuação que tinha montado para aquela compra na loja de equipamentos. Então, ao começar a explicação sobre o material elétrico de que precisa, comete um erro: confunde “tomada” com “interruptor”. A pequena falha é percebida pelo atendente que, sorriso irônico no rosto cerrado, trata de corrigir a pequena gafe. O índice de masculinidade desce vertiginosamente. Brota a insegurança, e de repente o atendente cresce em tamanho, o peito peludo fica mais peludo, o jaleco aberto mais aberto, a voz dele é rouca (pensa que a sua voz também está ficando rouca, o seu jeito peludo, e essa roupa que vestiu?). A voz prossegue:

- A senhora entendeu tudo direitinho, madame? Qualquer coisa, a senhora pode pedir ajuda para o seu marido.

O frio correndo na barriga, subindo. Como explicar que não tem marido? Que o marido nunca soube o que era um interruptor, que tinha pânico de eletricidade? E mais: que ele foi embora e não volta mais (mas também quem não iria, minha senhora, será que ele pensou isso?).

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

O Poste

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

Leio no jornal da imprensa grande que o jogador do Internacional Gum não quer ser mais chamado dessa forma, mas sim de Wellington Pereira, seu nome de batismo. O pleito é justo; é um direito seu escolher o nome pelo qual gostaria de ser chamado. A reivindicação de WP (será que ele gostaria de ser chamado de WP?) parece, contudo, ser um assunto que interessa particularmente a ele e aos meios de comunicação da capital gaúcha; nós, leitores, é que somos obrigados a ler mais uma notícia que é pura encheção de lingüiça, enrolação, falta de assunto. Será que falta tanto assunto? Tá, quem sabe o problema do nome desse jogador também interesse à sua família, os Pereira, ou ao (agora) famoso amigo de WP em Marília, SP, que aos 5 anos deu o famoso apelido de Goma de Mascar. Imagina se os jogadores fossem chamados assim, pelos apelidos de infância? Trago essa noticia à baila porque hoje eu vou escrever sobre como alguns jogadores poderiam ser chamados no futebol que jogamos às quintas-feiras. É o tema da crônica de hoje. É bom esclarecer o tema. Acusam-me de não ter “um tema” nas minhas crônicas, que sou uma arara vermelha, ou, mais poeticamente, um difusor da “Palavrarara” de Hilda Hilst, mas tenho plena consciência de que não chego nem aos pés da autora de “Fluxo-Floema”. Quem dera!

O nosso futebol. Poucos acompanharam atentamente, mas durante um ano e meio de crônicas esportivas que escrevo para o seleto grupo de amigos do futebol da Coflob – os coflobianos – muitos tipos esquisitos lá surgiram. Não há espaço para enumerá-los todos, aqui, mas quem não lembra do Caneleiro, do Ogro, do Ciscador de Ilusões, o goleiro Degoleirado, do Sherek, do Neanderthal, do Oitavo Siso, do Homem de Cromayon, do Frankstein, do Diabo-Loiro, do Escanhoado, do Não-Me-Toque, do Instrutor, do Cordial Brasileiro, e mais recentemente do Goleiro-Monociclo, do Marcador de Redes, do Ipisilone, do Martim Pescador, do Bicudo e do Sacolão? Até uma Fisioterapeuta Gordinha ganhou crônica pelos serviços prestados à Confraria... Mas digo: a galeria de tipos Coflobianos não termina aí; outros mais poderiam ser citados, e cada um ganhou, no seu devido contexto, uma crônica dedicada ao nobilis apelido, e se esqueço de alguns, repito, é por pura falta de espaço.

No jogo de ontem mais um apelido. É sempre assim. Eles brotam da terra. E se digo que o motor que impulsiona na minha cabeça de cronista esportiva (urgh! Quase tive um troço) a criação desses “nomes”, “apelidos”, é um emaranhado desorganizado de palavras dançando internamente em episódios esdrúxulos, cenas inusitadas e atitudes disformes e aberrantes que vejo – alguns chamam de alucinação, de loucura, porque não entendem a criação –, e tudo isso amigos porque o jogo, para mim, pulsa, ele pulsa. Na sua loucura interna, o jogo é uma alucinação. A gente acredita que é futebol, mas é a vida, ali, durante uma hora, uma vez por semana.

Então ontem, quando o nosso goleiro, batizado assim Degoleirado pelas tantas boladas que leva no pescoço, o dono desta pena (quem é que ainda escreve “pena” ainda hoje? Poor guy, men!) e dessas verdades relativas, o auto-intitulado seguidor das duras pegadas de Hilda Hilst trilhou no universo caleidoscópico e visceralmente poético gerado no ventre de um livro como “Fluxo-Floema” – inclassificável pela crítica – este goleiro ontem poderia ser chamado simplesmente de Poste.

Isso tudo pelas brilhantes defesas – jamais vistas pelo treinador de goleiros presente ao lado do campo ontem – o Uendel da Coflob – caracterizadas pelo bom posicionamento embaixo das traves – salvando, inclusive um chute à queima-roupa –, que atribuo hoje ao nosso goleiro o apelido de Poste. O mesmo poste que impediu aquele atacante de marcar o gol embaixo das traves, sozinho, depois de já vencido o goleiro. Incrível Bicudo ter perdido aquele gol.

Convém lembrar, contudo, que os postes às vezes ficam parados, estáticos.... Exatamente como ocorreu no primeiro e no segundo gol sofridos, ontem à noite, pela minha equipe, e que fizeram Uendel torcer o nariz.

Uendel não gosta de postes.


Porto Alegre, 15 de setembro de 2006.

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

Loja de Cosméticos


Como eu desenvolvi aquilo? Quando foi que tudo começou? Só sei que quando vi, já tinha acontecido. Parado diante das prateleiras de shampoos daquela loja especializada, meu olhar tinha o brilho mazar dos anti-resíduos. Duas horas escolhendo a perfumaria dos meus sonhos.... E o sonho passando ao meu lado. O cheiro. A permanência poética das coisas pensadas dentro de uma loja de cosméticos, onde o sorriso das atendentes tem o perfume das coisas inanimadas. O encanto de um itinerário feito de procura. Ela me chamou duas vezes. Eu nunca fui bom em extrair cheiros e entender sensibilidades, e naquele momento eu já estou pensando em surdez ironicamente adquirida.

Disse um “oi”, assim, comprido. Tinha um certo buquê de perfume aquele “oi”. No sonho, pelo menos tinha.

Eu pensando que aquela coisa me inquietava. O passeio, a eterna ronda, a faina, dia após dia, de loja em loja, observando o mundo das eqüidades estéticas diluídas em comentários que começavam sempre com algo assim, banal: “Nossa!”. A estranheza daquela futilidade me cercando aos poucos. Eu fechava os ouvidos, queria continuar ali, e então me concentrava nos produtos. Tentava abstrair as pessoas, mas eu nunca entendi por que motivo as pessoas sempre vão tão arrumadas para comprar cosméticos.... Aqueles assuntos em que me especializei. Na verdade, não sei por que eu era sempre o único homem na loja, e ali, o mais desarrumado, buscando sempre o último lançamento. A inutilidade de descobrir que elas sempre me olhavam de cima abaixo, que não perdoam ninguém.

Ela chegou dizendo, uma voz que parecia doce: “Oi. Já foi atendido?”.

Levei dois dias para entender o que havia acontecido naquele dia. Voltei arrumado, no terceiro, minha enfática tentativa de romper o mundo ao meu redor (eu sempre fui muito tímido). Não deu certo, por alguma razão ela não estava lá; jamais encontrei aquela atendente de novo. Perguntei por ela, juntei esforços (todos os meus sentidos em ação), fui minucioso na descrição do seu cabelo, na altura, nos caracteres da voz, na cor dos olhos, em tudo, mas ninguém a conhecia. Nunca tinham visto ali ninguém assim-assim.

Existia? Um sonho? A que será que se destinam os sonhos?

Parado diante do grande espelho daquela loja de cosméticos. A consciência fragmentada. Abobalhado (“Não, não conhecemos”); imóvel, o desabamento de um olhar perscrutando a falta de simetria e a péssima combinação de traje, camisa e gravata que eu tinha minuciosamente arquitetado o para o nosso reencontro (“Não há ninguém aqui com tal descrição”). Sim, eu, o sujeito beirando os 50 anos, socado naquele terno - senso estético dissonante para o lugar -, naquele instante refletido no grande espelho absurdamente iluminado; parado, procurando entre a infinidade de cremes, shampoos, e condicionadores o aroma perfeito, o sentido das coisas. Ela. Até chegar ali o meu circuito foi percorrer as lojas especializadas numa busca aparentemente sem fim, que então chegava ao fim. E na minha procura, o filme que eu rodava na cabeça tinha as mais variadas cores e estava simetricamente enquadrado em corredores intermináveis, moldado pela simetria quase sempre perfeita, como perfeitas eram aquelas palavras da cena inicial: “Posso ajudar?” Francamente, não podiam mais. Eu já não olhava mais as prateleiras – comecei a abrir os potes e a experimentá-los. Era isso. Seria isso mesmo? Se eu nunca consegui ver nada ao meu redor (aquela coisa de as pessoas passarem por mim); se a sensibilidade para as coisas nunca foi o meu forte, e os cheiros eram uma atmosfera inexistente, só me restava ouvir o mundo ao meu redor. E nem isso mais eu conseguia. Agarrei-me ao paladar das coisas perdidas....

“Fique à vontade”, não é o que sempre nos dizem?

Naquele dia ela ficou falando comigo antes de ir embora. Tentou, e creio, desistiu. Até que alguém veio me acordar dizendo que os produtos expostos não podiam ser consumidos na loja.

domingo, 10 de setembro de 2006

O Edifício Perdido

Alguém está comprando um apartamento. Diz: "Tem que ser voltado para o fosso". O corretor de imóveis olha meio estranhado mas no fundo vibra: "Ninguém nunca quer comprar aqueles". Parece um sonho. Finalmente esse senhor terá o apartamento que sempre sonhou. Ele ri. O corretor também ri.

Os anos se passam e ali está aquele senhor. Um homem que não sai mais de casa. Vive um mundo de perguntas.

Como sentir a pulsação dessa selva de pedra sem enlocuquecer? A pergunta, ele faz agora, ali sentado ao lado do box do banheiro, aquele mesmo senhor, o morador do décimo quinto andar do Edifício Master, que há alguns anos atrás comprou aquele apartamento. Loucura aquilo, viver no completo abandono do fosso e alheio a tudo - inclusive luz. Quer dizer....

Seu João, 66 anos, morador do Master há 25, nem percebeu, mas já está ali há três horas e não pensa em sair. Conhece tudo naquilo que faz; todos os movimentos, circulações, sons. O edifício do Seu João é um organograma coberto de cheiros, pulsações e sons. Aqueles sons que pautaram sua vida, pontilhada, todo dia, pelo compromisso de observar a vida alheia. Agora ali, entregue na organização sonora dessa loucura que é viver coletivamente escutando o som e os ruídos dos outros, Seu João já esqueceu que não mora mais em sua casa - abandonada ao destino - ele mora agora no fosso.

Dali, o alheio lhe preenche.

Na verdade, não foi nada fácil chegar até ali. Aquela decisão. Abandonar o mundo, os amigos, os parentes. Ficar na dedicação exclusiva de um fosso, no mundo das intimidades.

O fosso de luz do Edifício Master é a fonte de inspiração desse antropólogo aposentado, que resolveu, um certo dia, adotar seu objeto de pesquisa por longos anos como palco de sua aposentadoria. E agora, ali, vendo a diversidade humana, os sons e os ruídos alheios como se fossem seus. E por isso esqueceu de todos, de tudo. Só ali, na escuridão do fosso de luz do seu edifício.

A variedade de sons de um edifício. Alguém já parou para pensar? É infinita. Dá uma tese em Antropologia, e foi isso que o Doutor Universitário João Flech Aníbal fez. Estudou o comportamento dos moradores do Edifício Master a vida inteira.... E a vida inteira na selva de pedra tentando entender a vida dos outros, anos e anos de trabalho de campo e ele acabou esquecendo no que se transformou o seu coração. Pois um a um ele foi deixando os amigos, abandonando os parentes, fugindo dos vizinhos, dos colegas. Toda uma carreira universidade perdida numa aposentadoria precoce que só lhe rendeu um montante de dinheiro suficiente para compar os noventa metros quadrados do décimo quinto andar do Edifício Master. Sim, uma vida voltado para o fosso.

Agora ali, esperando o próximo movimento dos vizinhos, o arrastar de chinelos da Dona Flor, uma descarga pontual no 14, a senhora do 1602 brincando com o gato, as gêmeas correndo no andar de cima.... Sim, não, Seu João tem certeza de que não está enlouquecendo, apesar de que tem repetido isso cada vez mais para si mesmo, como se ele mesmo já estivesse ouvindo sons de dentro de si.... Como os sons do fosso já tivessem vida.... E sempre quando alguém entra em seu apartamento para deixar alguma coisa (a porta está sempre aberta), lhe deixar comida, roupa limpa, agasalho ou um pouco de água e lhe perguntar afinal por que motivo ele não sai mais do banheiro e da área de serviço, ele não responde. Silencia. Ninguém sabe - Seu João não diz - mas a razão de continuar vivendo, nem que seja viver o som dos outros, está naquele fosso.

O fosso que foi a sua vida.

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

O Teatro das Pausas

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

“O seu abandono surgiu em plena realidade.”
Mãos Vazias, de Lúcio Cardoso



A crônica esportiva ainda não descobriu o futebol amador – esse negócio de jogar com a alma e os dentes uma vez por semana. Descobrisse e veria o quanto há de matéria-prima para preencher o jornal com matérias interessantes. Creio que ninguém acha “interessantes” matérias sobre o ex-goleiro que vende frangos, sobre a nova bola do campeonato brasileiro (que, curiosamente, será nova no campeonato do ano que vem) ou páginas e páginas, dia após dia, um mesmo assunto: a lesão no dedo minguinho do goleiro Edmar do Avaté F.C. Esta última “notícia”, tudo bem, é um exagero e está consagrada em um de meus contos sobre mundo do futebol; contudo, as duas anteriores são tão verídicas quanto desnecessárias. Observasse melhor o futebol amador e teria ali a crônica “especializada” um cabedal de matérias ocasionalmente pegando fogo. Não ficariam com as “Mãos Vazias” – aquele esgotamento emocional de que nos falava o escritor mineiro Lúcio Cardoso e que conduz ao vazio. A crônica esportiva não tem assunto. Este é o ponto. Vive o teatro do interlúdio – a falta de matéria – daí a constante “encheção de lingüiça” das páginas esportivas.

No futebol jogado nos campos da Coflob – a reunião semanal de alguns amigos em torno de um objetivo comum: jogar futebol, conversar sobre a vida, além de beber algumas cervejas – às vezes mais tempo de cerveja do que bola rolando – ali é diferente. Assunto não falta. E até a falta de futebol é assunto. Sim, ontem não jogamos, não teve jogo. Feriado, aquela coisa, estava muito frio, aquela outra coisa, dia para dormir o dia inteiro, a coisa aquela. Ninguém sai de casa. Só teatro – encenação – e aí surge a pergunta: “Quem joga?”. Não aparece um. Vivemos ontem, mais uma vez, o “teatro das pausas”, o compasso de espera para o que virá.

O jogo, contudo, muitas vezes é só isto: pausas. Não me refiro somente ao espaçamento dos jogos, os longos intervalos sem jogar devido ao impiedoso inverno gaúcho, pois a isso se somam também outros fatores tais como os feriados e algumas lesões no plantel. Refiro-me, sim, ao ritmo de jogo do nosso futebol às quintas-feiras. Por vezes “no ritmo lento de um funeral”; noutras “uma procissão de mortos”, uma verdadeira trilogia do terror, e se faço referência direta à bela narrativa de Ignácio de Loyola Brandão e ao filme de Luiz Sérgio Person é apenas para dizer que o futebol amador é assim mesmo: esteticamente grotesco. Na sua essência, portanto, é feito de agônicas pausas, que ora se manifestam nesses longos períodos de inatividade (circunstância esta que só agrava o retorno de alguns ao seu melhor futebol), ora se revelam durante os jogos, aquela espécie de fluxo narrativo tarkosvkiano com o qual alguns jogadores realizam suas jogadas. “O Sacrifício” de jogar um futebol recheado de firulas, de correr o tempo todo atrás da bola e fazer jogadas vazias de sentido e significações – quero dizer, a bola não rola, simplesmente isso, porque alguns abandonam a realidade do jogo antes do final da partida – abandonam a zaga, não marcam mais, param de correr ou de fazer gols. Inexplicavelmente, param de jogar. Daí os gols sofridos, o placar dilatado, a derrota. Uma paralisia cerebral momentânea.
De modo que a agonia de esperar até a próxima semana para poder encontrar o grupo e jogar de novo fica muito parecida ao desespero de ver o deserto, o aniquilamento coletivo, a falta de ação que se forma na equipe, por vezes, durante uma partida de futebol. Uma agonia coletiva. E é assim – perplexo – que vejo nosso futebol.

Um teatro de pausas.

Porto Alegre, 8 de setembro de 2006.

terça-feira, 5 de setembro de 2006

O Show da Vida


Qual a validade de uma escrita que tente abordar um filme e nela o aprisionar? A crítica cinematográfica, quero assim dizer. Que necessidade temos dessa urgência de colocar a obra pictória no papel, se um filme é um acontecimento feito de sensações? Impossível, quero crer. E é quando nos deparamos com arranjos cênicos como "O Show da Vida" ("The Jimmy Show") que nos encontramos diante do impasse: como sintetizar uma obra se ela se dilui e flui como a vida? Mesmo assim, assim:
Jimmy O’Brian tem um problema. Ele mora com a vó em uma casa infestada de cupins. A mulher e a filha foram embora. O dinheiro não dá nem para o remédio da anciã. Abandonou uma promissora carreira de inventor de torradeiras de salsicha. Trocou de (sub)emprego umas tantas vezes nos últimos anos, nos quais ou cometia pequenos furtos, ou ironizava os clientes. Não tem amigos, quer dizer... ele não tem mais ninguém porque sua avó irá morrer no dia em que seu velho carro pifar. Esta é a vida de Jimmy, um menino triste que cresceu e hoje tem um sonho: quer ser comediante, desses que se apresentam em público. Mas ele não tem vocação, e é por isso que se ele só consegue espaço para se apresentar na "terça dos iniciantes", num clube ordinário da cidade.
A matéria do sonho de Jimmy é alcançar a fama, e é por isso que ele não consegue dinheiro para o remédio da avó, não dá carinho e nem afeto à esposa e à filha, perde o amigo do emprego, o emprego, briga com todos, inclusive com a platéia de seu show.
O show de Jimmy é contar, todas as noites, as peripécias do seu cotidiano e com isso não tirar nem uma risada da platéia – só a indignação. Mas ele vai levando, e quanto mais se apresenta mais vai dissecando seu passado, seus medos, suas dúvidas, sua trajetória e as coisas que deram errado no caminho. Jimmy é um cara escalando uma montanha de gelo que dá chute em si mesmo, que a certa altura no "Clube da Tragédia", pergunta a si: "qual o meu problema?" E diz para si mesmo: "Estou cansado de avaliar a vida e acabar vazio". "Cansado de estar cansado." E concluí: "Isso não é engraçado".
O sonho de Jimmy acaba misturando-se com o fluxo da narrativa dos seus problemas, com o seu cotidiano trivial de amarguras e frustração, e é aí, exatamente aí nesse ponto que o filme me parece incrível. Como algo inacreditável, não crível, o diretor-ator Frank Whaley faz de uma história simples – o problema de Jimmy – a matéria do sonho de todos aqueles que, tendo a felicidade à sua frente, deixam ela escapar na busca de um sonho.
Um filme sobre a vida.

(O Show da Vida, "The Jimmy Show", EUA/2001, de Frank Whaley)

domingo, 3 de setembro de 2006

Alta Exposição

A sinfonia das grandes feiras. Impossível não pensar nisso, ali, parado diante das três bolas gigantescas que são a marca de identificação do maior evento do agronegócio do Estado do Rio Grande do Sul. A exposição internacional de Esteio, a Expointer. O meu passeio tinha que começar por ali, pela infância.

Na infância, o pai me levava na exposição, e as bolas eram fantásticas, gigantescas, lindas, alucinógenas eu quero dizer – mas eu não sabia o que alucinava e o que não alucinava. O passeio pelo parque de exposições começava pelas gigantescas bolas coloridas e era quase todo preenchido pelo meu fascínio por vacas, ovelhas e equipamentos agrícolas. Não havia pessoas. Pouco lembro delas.

Ontem, o meu passeio era outro. A multidão. Eu sempre quis compreender o que move as pessoas nesses megaeventos, ainda que qualquer um possa me dizer que há muita coisa para se ver. É o que fiz. Pelo menos tentei.

A primeira coisa que me interessou foi o Homem do Gato. Estranho ir a uma exposição de animais e ver um desses artistas da fome que fazem show em lugares públicos para tentar driblar a vida e arrumar algum. Quase duas horas de passeio e a única coisa que conseguiu me reter dez minutos foi aquele sujeito de imita estar batendo num gato dentro de um saco. O sujeito fica naquilo horas, atrai um monte de gente. Eu fascinado pelo artista popular. E fiquei ali, na maior obviedade da feira. Faltava sentido naquilo tudo. Mas o que é “sentido” numa feira de agronegócio quando você não tem negócio nenhum?

Adiante parei para ouvir aproximadamente umas vinte explicações sobre: criação de faisões, peso médio dos caprinos, melhores regiões para o plantio de canola, a produtividade por hectare de uma semeadora, a melhor forma de armazenamento de grãos, sistemas bionergéticos de produção de óleo vegetal... Sim foi ali, no estande na Universidade Federal que percebi o que eu estava fazendo na feira. Eu tinha um negócio.

Ninguém ouve tanta explicação sobre como soja, canola e mamona transformam-se em combustível vegetal se não tiver alguma coisa verde nos olhos da moça que apresentava o painel. Também ninguém fica ouvindo toda uma explanação sobre o “ciclo da produção agrícola”, aquela coisa “do produtor ao consumidor” se não tiver algum sorriso deslizando pelo canto da boca (aquela covinha, eu sempre me apaixono por mulheres com covinhas no queixo). Creio, por fim, que nenhuma pessoa permanece tanto tempo ouvindo a explicação dos vários usos do couro no vestuário se não tiver à sua frente alguém esteticamente perfumado... Acordei quando meu filho disse que precisava ir ao banheiro.

Perdido na feira atrás do banheiro. Assim foi que cheguei nela. A linda policial que prestava serviços, esse dia, no pavilhão 48. Eu pensando que talvez não fosse oportuno retirar a atenção de uma policial em serviço num evento tão grande como aquele. Sempre pode ter alguém mais a perigo. Mas – dane-se – as pessoas sempre fazem perguntar idiotas para o policiamento nessas feiras populacionais, e eu sempre fico meio idiota nessas aglomerações humanas. Foi o que fiz, idiota, a pergunta. Não esperava aquela receptividade toda, ela caminhando conosco, conduzindo-nos calmamente até a porta do banheiro. Falava bonito, articulado, uma autêntica oficial a serviço da comunidade.

Antes de ela ir embora, pedi um minuto, olhei bem para ela com um olhar de conquistador que eu tinha há 20 anos atrás e a pergunta me foi inevitável:

- A gente pode dar uma cantada numa policial em serviço, ou isso será interpretado como uma tentativa de lhe tirar a atenção?

Ela foi seca como o arroz descascado que eu tinha visto dez minutos atrás:

- Cidadão, o senhor está numa alta exposição comigo aqui agora. Talvez o senhor precise de ajuda... Procure o serviço de informações que fica no pavilhão ao lado.

Apontou a direção, deu às costas, foi embora. Fiquei com a impressão de que ela não tinha entendido a minha pergunta.




sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Um Desconhecido

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

O jogo é ponto de vista. Veja-se do ponto de vista de onde se quiser ver, não importa, uma partida de futebol será sempre um evento de múltiplas leituras, um acontecimento de densidade dramática e paixões incontroladas, como no romance de Lúcio Cardoso. Um absurdo. Claro que não me refiro, em absoluto, à crônica esportiva tradicional diariamente posta à nossa mesa em notícias de jornais, pois esta vê no jogo uma mecânica de decorrências, resultados e explicações. Mais explicações do que qualquer outra coisa. Para mim, iniciado há pouco tempo na prata da crônica, arisco dizer que o jogo é, antes, impulso, vontade e coração. Uma batalha épica, tal como escreveu Nelson Rodrigues. E assim quero ver o jogo de ontem. Uma seqüência interminável de acontecimentos insólitos. O jogo, um desconhecido para mim.

Sim. Jogamos todas as quintas-feiras, reunidos em torno de um grupo cuja unidade futebolística é dada pelos estreitos laços de amizade, por uma porção de cerveja Serramalte após o jogo e por um nome: Coflob (fiquemos assim, sem o nome por extenso por enquanto). Ali, um jogo. Quero dizer, sim, que a percepção de tudo que acontece durante uma hora é de que aconteceu um jogo. Uns pensam que não, que apenas corremos de um lado para o outro tentando a integração mínima de uma seqüência de jogadas que garantisse um pouco de plasticidade e beleza ao espetáculo, etc. Para mim, contudo, o jogo é insólito. Penso que do ponto de vista privilegiado onde me encontro durante a partida – a visão privilegiada do goleiro – me irrompem certos acessos de insanidade em campo, plenamente justificáveis pelo desatino que é o futebol amador, a paixão incontrolada de que nos fala Lúcio Cardoso. Eis ali o futebol no amor, porque a bola nem sempre rola redonda, ela rola insana.

Ontem, porém, apesar da inércia operante do nosso ataque – a insistir que a rede a ser atingida é a de proteção e não a do gol – e sobremodo por causa da lastimável apresentação do goleiro Dêga, um desconhecido em campo na noite passada, apesar disso empatamos. Digo empate, mas quero mesmo dizer que a partida teve ares épicos de vitória conseguida nos minutos finais (a igualdade de forças). E esta é a maravilha do futebol amador. O nada de um empate conseguido a duras penas. Quase digo, pernas, mas ainda jogamos nas linhas da lealdade.... O problema é esse desconhecido – o goleiro – que a cada lance insólito olha para as luvas como a procurar a explicação. O absurdo.

Sim, porque a certa altura da partida, não bastasse o irritante descompasso inoperante do nosso ataque, formado pelos Indomáveis Indômitos, ainda tinha o nosso goleiro, o Senhor Incrível (digamos que o Sr. Incrível tentando colocar o cinto no início do filme), que entregou o jogo em dois lances bisonhos, para não dizer lastimável e um tanto agressivo aos olhos serenos do seleto, sóbrio e único espectador que a tudo testemunhou. Ali, solitário, foi ele quem melhor viu o desempenho daquele ente abstrato postado embaixo das traves, o nosso goleiro. Ele, sempre ele, o eterno culpado. Ontem, hoje e sempre.

Um desconhecido.



Porto Alegre, 1º de setembro de 2006.

O Íncubo

Comecei isso tudo como alguém que se deita sobre algo com a intenção de melhor compreender a complexidade das coisas ao seu redor, e creio que foi assim que decidi iniciar este blog no meio de uma noite silenciosa de agosto.

Estava sozinho - disso eu me lembro - e foi quando demônios íncubos vieram inicialmente tirar o meu sono e me jogar aqui, no desconhecido, que descobri que eu precisava escrever, mostrar ao mundo que talvez eu pudesse ajudar de alguma maneira a compreender algumas coisas, mesmo sendo o que sou.

Eu, o desconhecido.

De modo que talvez a única coisa que pudesse me impulsionar a escrever aqui era a vontade de mergulhar no âmago das coisas, isso de apanhar os eventos enquanto eles estão passando, de enxergar o mundo através das coisas, das pessoas, do jogo de espelhos, enfim, na sua essência, compreender de que é feito esse neutro artesanato de vida, tarefa que, agora sei, vai me reter aqui um bom tempo.

Me parece, então, que a idéia inicial era esta: um mergulho no desconhecido das coisas, uma viagem sem volta, ao insólito, sem aparente direção mas rumo aos meus fantasmas, buscando talvez ali a essencialidade das coisas perdidas.... Compreender, ao fim, o inevitável:

Eu sou uma pergunta.