quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Agraciação

A velocidade era um fato.
Placas, sinalização, vultos, vagas lembranças vencidas, não lidas, luzes, cores, painéis; um excesso de tudo, de todos, o desencanto por uma tal existência – a falta de sentido registrada na velocidade de seu carro – e os outros ficaram para trás – e suas mãos grudadas ao volante – e algum desentendimento ali atrás, no bar.
Na direção, ele
Um artista procurando a obra perfeita:
Perfeição
Hoje, ali, adiante
À sua frente, um fato tardio e de ação lenta.
Noite após noite, os amigos deixavam aquele outro atirado em uma mesa no fundo do bar – ele sempre fora o último, o esquecido, o olvidado, e o fato passou desapercebido pelos dono da casa mais uma vez
Na perdição dos vários copos vazios, agora invisíveis, ele saíra porta afora, minutos antes, e agora cambaleava.
Junto levava a memória do abandono
E por ruas enlameadas e calçadas sujas, ele
Hoje sozinho
Nesta estrada
Luzes, carros; velocidade, violência; desequilíbrio
No último gesto, ele abana (seria alguém conhecido vindo buscá-lo?)
E por esses caminhos perigosos em beira de estradas...
No escuro do fim de mais uma noite
Este é mais um alguém
Rápido, ele seguiu na estrada de sua perdição – exagero que lhe coube em pensamento
E na ação apenas aquilo – um acelerador
A certeza tinha o peso e a forma de um convite de alguém que caminha à beira da berma e abana
Ele mais ele
E a certeza de que o prazer dura uma fração de segundo.
Basta esquecer.
E pisar fundo.
Também confuso, e não tão rápido, ele vê o carro avançar em sua direção.
Luzes – que este outro só viu quando tudo no mundo já era para ele escuridão.
E neste dia, no meio da noite, um encontro.
Agraciação entre os corpos
(a indiferença instala-se pelo esquecimento; o abandono começa no bar)
Obviedades esquecidas
À beira do acostamento, ele ainda carregava o sorriso e os passos de um bêbado qualquer, daqueles que trazem consigo perdidas memórias, de quem foi, de quem poderia ter sido.
Na direção, um outro sorriso, em outra pessoa, e a certeza da execução perfeita de uma arte antiga e cruel.
Pessoa nenhuma viu.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Goleiro noturno

SEGUNDA CRÔNICA ESPORTIVA DA LIBERTADORES 2010

No rio de textos e crônicas que invadiram nossos corações e mentes, e que mexeu com nossas leituras e nossas paixões dementes, afirmo que nos textos que abordaram a segunda conquista da Taça Libertadores da América ganha pelo Sport Club Internacional, na noite do dia 18 de agosto de 2010, faltou tratar de um aspecto insólito. Sempre falta contar alguma coisa sobre um evento tão cheio de significados, ainda que para mim, seja qual for o jogo e seja qual for a sua importância, a loucura é sempre a mesma. Ela pulsa aos nossos olhos. Interessa-me, aqui, diferente da linha oficial da crônica oficiosa, o absurdo. O detalhe grotesco. A minha simpatia é pelo oprimidos e pelos esquecidos de todo o gênero. Interesso-me pelo goleiro, este solitário das traves, o homem que vive no cercadinho da grande área. Por vezes, interesso-me tanto por essa figura consagrada por Nelson Rodrigues em sua crônica sobre o goleiro da Copa de 1950 Barbosa, publicada no livro À sombra das chuteiras imortais, que hoje eu vou falar do outro goleiro esquecido pela torcida. O goleiro noturno – ou se preferirem soturno. Seu nome: Pato Abbondanzieri.
Sim, amigos, o jogo é luz; é palco; é o grito da torcida. O grito de alívio de quem vence e tira um peso das costas, ao mesmo tempo em que também é o grito de desespero de quem vê sua vantagem sumir da noite para a noite – e agora o arquirival, o coirmão vermelho, o Colorado, tem o mesmo número de títulos que o Time da Azenha, a Nação Tricolor. Apesar de ser toda essa festa e euforia em exaltar a toda hora e a todo instante o Talismã Colorado chamado Guiliano, o craque, o matador, o homem-gol, o gol mais bonito da história desta Libertadores, devemos lembrar do trabalho de carpintaria dos reservas, dos olvidados para ficarmos com essa rica e sonora palavra espanhola. E dos reservas, aquele que nos garantiu pequenos sucessos que, antes da final, óbvio, nos levaram à final, foi o nosso goleiro. Falo do argentino Pato Abbondanzieri, um protagonista da escuridão, o homem vestido de preto no banco de reserva do Inter na noite de quarta-feira, era ali, quieto, um animal agonizante (na metáfora de Philip Roth) feito guarda noturno, ou se preferirem a palavra antiga, guarda-soturno, acanhado, sozinho, esperando como todo goleiro (reserva) e assistindo ao sucesso (e às tantas falhas) do titular Renan na competição. Mas Pato Abbondanzieri é um predestinado, um goleiro multicampeão pelo Boca Juniors, e que no Inter veio para se tornar o protagonista. E ele foi. O protagonista do absurdo.
Quem não lembra do famoso pênalti revertido por Abbondanzieri em um dos jogos da fase de mata-mata? E o goleiro-volante? Alguém aí esqueceu o papel de Pato na meia cancha colorada, buscando bolas impossíveis na lateral da intermediária? E as defesas espetaculares seguidas de falhas que causavam perplexidade? Difícil esquecer uma figura tal. O Inter sempre se notificou em trazer espécie em extinção na posição número 1. Tranquilos, os torcedores colorados já sabiam que na quarta-feira da glória e da conquista do segundo título latino-americano, Pato Abbondanzieri seria (e foi) um espectador de luxo.
Sim, porque no jogo da última quarta-feira, era Pato um goleiro soturno. Abbondanzieri o goleiro que ficou no banco de reservas na decisão da Taça Libertadores de 2010, nada pode fazer para mudar o rumo da partida que não fosse nos lembrar de sua história recente de malabarismos e confusões, de saídas homéricas e esquizofrênicas, de defesas franciscanas e em três, quatro, cinco tempos. Verdadeiro bebê jogado na banheiro, era água para todo o lado. Ficou no banco. No soturno da casamata, olhar fixo para o campo, aliviado e conformado. Um pato do absurdo!
Em casa, assistindo ao jogo do time do meu coração, não pude deixar de pensar na solidão dos solitários, esses seres inglórios, os goleiros.
Este, Pato Abbondanzieri.
Um goleiro soturno.
Porto Alegre, 20 de agosto de 2010.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Uma noite colorada

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEGUNDA LIBERTADORES

Muito se vai ler sobre a segunda conquista da Taça Libertadores da América ganha pelo Sport Club Internacional na noite. Choveram textos exaltando qualidade, videntes garantindo que já sabiam do resultado, torcedores do coirmão afirmando que era jogo jogado, ganho, mas eu lhes garanto que a crônica esportiva, além de canalha, é repetitiva. Tire-se o nome do time vencedor, mude-se o título conquista, lugar, circunstância, tempo, e teremos um texto qualquer sobre mais um conquista – alguns se atrevem – qualquer. Para mim, o jogo é outro. O absurdo. Os detalhes. As simpatias. O talismã. Jogo é raça, combatividade, organização tática, grupo, talento individual e um pouco de sorte – alguns chamam coincidências. Ontem eu vi ondas ao meu redor – era a torcida. Ver o meu time ganhar a sua segunda Libertadores ontem, exatos quatro anos depois da primeira, foi um exercício de puro amor ao meu clube. Aos heróis da noite. Ao meu filho, o cara mais feliz após o apito final.
O jogo. Carregado de disputa e de simbolismo. Os convocados para a noite de ontem, os heróis colorados que nos igualaram em títulos continentais ao rival provinciano, tiveram uma longa noite até chegarmos ao 3 a 2 do placar que dava o título ao Inter. Noite para ficar na memória como um exercício literário de criação a partir de um fluxo do pensamento. As ondas, o brilhante e esquizofrênico texto de Virginia Woolf, bem poderia resumir o desespero de uma final que não estava ganha antes de iniciar. Pior: teve componentes de sofrimento. Ontem à noite no Estádio Beira-Rio tivemos de tudo um pouco: tivemos um goleiro que não foi exigido e que mostrou sua estrela cintilante pela escolha da cor da camisa num amarelo semáforo (Renan), tivemos um autêntico general libertador em campo (Bolívar), um guerreiro argentino (Guiñazu), um craque ao estilo de Falcão (Sandro), dois laterais participativos e nada depressivos de outros tempos (Nei e Kléber), tivemos um autêntico representante dos povos brasileiros (Índio), tivemos a solidez e a constância de um octopus de tantos braços e pernas e bandagens na cabeça (Tinga), tivemos ainda um craque impecável no toque da bola (D´Alessndro) e um atacante infernal e desinquieto (Taison), mas tivemos sobretudo e principalmente a presença de três talismãs colorados: Leandro Guerreiro, Rafael Sobis e Guiliano, reservas de luxo que entraram para decidir (Sobis no lugar de Alecssandro desde o início do jogo. De todos eles, Guiliano, para mim o craque do jogo, o pé-quente da campanha desta Libertadores, o homem que sempre entrava no segundo tempo para decidir o jogo (ontem não foi diferente), o goleador do campeonato e dono do gol mais bonito da noite de ontem, nessa que foi uma das partidas mais perfeitas que já assisti. Garra feita com talismã.
Vi o jogo com meu filho – e conosco a mãe dele e alguns amigos. Churrasco, cerveja, pomelo e chocolate; narradores, narrações, pulos, emoção; e muita ansiedade; torcida, gritos de Vamo, vamo Inter! e gritos de desespero e de alegria até o pulo e o abraço final: É campeão! Uma noite de aventura. Para o meu filho, um jogo como o de ontem foi uma conquista feita nos detalhes: do uniforme de treino em forma de capa, nos detalhes da escalação, passando pela torcida pelo demoníaco e destruidor guerreiro Guiñazu, até os pequenos acertos e simpatias (nossas) de qual a posição em que assistiríamos ao jogo, quais as camisas que vestiríamos, enfim, tudo foi pensado, sentido, vivido. Hoje, o título é nosso: do time e dos torcedores. A conquista da Libertadores se faz assim: com garra e técnica, com sorte e com objetos iluminados; e com jogadores de carisma e talento que entraram para definir.
Em casa, assistindo o jogo, foi como se tivéssemos em uma noite estrelada com seus lampejos de pura graça e euforia, que começou quando meu filho e eu fomos escolher o uniforme que poderia nos trazer mais sorte durante a partida. E então foi assim que aconteceu o caso da camisa verde colorada, aquele uniforme de goleiro que retirei do roupeiro e que expusemos na sala durante o jogo para trazer sorte (já tinha acontecido assim na semifinal). A camisa era um uniforme antigo usado do pelo goleiro André nos anos de depressão do futebol colorado (1999), e que ontem, muitos anos depois e como uma espécie de vingança a tudo, se impôs sobre outros mantos colorados de outras conquistas espalhados por nossa casa. Foi este o precioso talismã que deixou tudo limpo e iluminado nessa noite encantada. E exatamente como fizeram em campo Rafael Sobis, Leandro Damião e Guiliano, o objeto verde colorado foi o nosso talismã nessa noite iluminada.
Uma noite colorada.
Porto Alegre, 19 de agosto de 2010.

domingo, 15 de agosto de 2010

O prazer dos recibos

O papel era uma tira pequena. Números, informações, assinatura. Um serviço.
Um fato tardio e de ação lenta.
Iniciava toda vez que decidia invadir os letreiros luminosos, associar convites, aceitar o jogo. Ocorria sempre no primeiro dia útil ao pagamento.
O seu.
Subia a escada (o mesmo corrimão que muitas outras mãos masculinas já digitaram), escolhia o quarto, sentava à beira da cama, depois a espera, a chegada, os sorrisos, o correto proceder de quem conhece as regras do encontro. E depois o pagamento.
Naquele dia
Onde o recibo, ele perguntou.
Ninguém pede, respondeu a garota dos fortes cílios; respondeu ao mesmo tempo em que apanhava as notas e se vestia.

Noite após noite.
Ruas enlameadas
Becos sórdidos
Pensões fétidas encaminhadas por viciados
Nos doces vícios da noite elegante ele vagava (suas caminhadas sempre o levavam ao eterno roçar-se).
A certeza.
O convite (era uma piscada)
A busca pelos recibos.
E o prazer em meia hora.

Confuso, rápido.

Certo dia, no meio da noite, um encontro.
Aquilo que se convencionou chamar de agraciação.
Ou pagamento.
E na contraprestação, fragmentos dispersos de um inequívoco e raro prazer.
O pulsar nos lençóis.
E o prazer dos recibos.