terça-feira, 30 de agosto de 2011

Santa Cruz, Cuba

Elevador. O sujeito entra com as páginas sujas da Cuba de El Rey, o protagonista, em mãos – e nada diz. Em segundos, o aparelho desce. A ascensorista nunca pergunta na descida; apenas sorri. E sorrindo os dois mergulham do 31º andar em direção às letras latinas do fundo do poço. Ele sorri na malícia das páginas que pouco atrás alimentavam sua libido.
Sempre no mesmo sorriso, a ascensorista do Edifício Santa Cruz diz que gosta de ler e mostra a ele uma pequena sacola escondida ao seu lado, no canto do aparelho. São livros entre outros embrulhos. Forçado pelo convite, o homem tira os olhos do Molecón de Havana, gira em 180 graus, respira fundo e diz:
– De ler, você gosta?
– Tenho sempre estes aqui comigo.
Mostra. Os livros estão amarfanhados. Pacotes de bolacha disputam espaço com um par de sapatos, um vaso de perfume e um rádio transmissor. Está quente no elevador, e os andares, sempre vencidos com decisão pela linha reta daquela alforria que lhe representa o espaço 4x4, agora lhe parecem eternos aqueles instantes.
Ainda grudado no livro, ele relembra mentalmente a última conversa de Reynaldo com Magdalena, das ruas, do cheiro, da sujeira, dos cortes tresloucados e a pergunta:
– Gosta de Cuba?
– Nunca saí daqui.
Por um tempo ele fica imaginando os caminhos que o levaram até a ilha, as ruelas empoeiradas, os prédios em ruínas misturado ao colorido dos carros, a cor café das mulatas em cada esquina...
Mas a ascensorista é diferente, ela é loira, tem a cor branca de um branco antigo, de falta de sol, de terra, de rua e de rum.
Ela ri.
Ele a pensar que talvez aquela mulher, completa em suas idades pretéritas, nunca tenha saído daquele cubículo, deste prédio, da cidade, estado, nação. E enquanto pensa isso vai lembrando dos pequenos quartos cubanos que frequentou, e agora... eles são linhas em suas mãos, no escárnio de um Rey de la Habana. Mesmo seu terno, a gravata e a pose alinhada são pouco diante da força dessa pequena novela cubana. A sua. E então os seus olhos apertados de bacharel preso à leitura de obscenidade se contorcem em direção aos olhos macios dessa mulher, e nesta partícula de tempo em que a porta ainda não se oferece, ele é definitivo e sustenta:
– Gostaria de ir?
Térreo. O solavanco da busca parada fez ambos balançarem dentro do elevador, e nesse choque de confusão ela acredita ter entendido que o distinto senhor lhe perguntou se “gostaria de ler”.
“Sim” foi a resposta.
“Até logo” foi o que ele disse.
O mesmo sim e o mesmo até logo que agora na rua alimenta os seus sonhos de voltar a Cuba, de um dia ainda retornar àquelas pensões toscas, de escrutínios e cheiros incomuns, de uma Havana colorida e cheia de sorrisos, quem sabe então retornar acompanhado de uma ascensorista que talvez nem conheça o mar.

domingo, 14 de agosto de 2011

A herança do pai

Em alguma rádio do circuito das ondas médias – o seu aparelho era mesmo antigo, uma relíquia, herança do velho pai – lembra que foi ali que escutou. Mas não é apenas o rádio que ainda vive mergulhado nessas ondas tão antigas. Suas lembranças também.

Na hora, acreditou em presságio. Algum aviso enviado pelos céus. Passagem de vozes vindas do além. Ou seria a visita por tanto tempo esperada? Enquanto ele se perguntava aonde mesmo andaria seu velho pai? Em noite passada, quase vai acreditando ter escutado ele rondar por ali, a bater com o nó dos dedos na janela da frente, na esperança de encontrar, como naquela novela mexicana, seus parentes vivos num vilarejo empobrecido do interior do país. Mas aquele lugar não era nenhuma vila – era sua casa – e seu pai, seu velho pai estava bem morto – foi ele mesmo quem enterrou – de modo que não podia ser o pai.

Na campanha do rádio, estavam anunciando um concurso para os ouvintes enviarem mensagens com as coisas que aprenderam com seus pais. Escutou tudo bastante atento, ouvido colado no rádio, um chiado no fundo, tentando lembrar os grandes ensinamentos de seu velho pai... Mas o que foi mesmo que aprendeu com o velho? Havia outro chiado, e este era bastante antigo.
E enquanto ele se esforçava em lembrar (o pai chegando em casa), nem percebeu que o filho pequeno (ou seria ele quando pequeno?) entrara esbaforido sala adentro, atrapalhando seus ouvidos, sua escuta, sua atenção (pai, pai...), a interromper a sessão vespertina de rádio, a hora das notícias do pai (do seu pai que gritava... gritava mas exigia silêncio), agora aquela promoção no rádio (como era mesmo?), talvez por isso que ele grite com o filho (seu velho pai gritando da porta “sai vagabundo!”), enxotou o garoto porta fora (ele saindo de casa para nunca mais voltar), o pequeno saindo para nunca mais voltar.

E o menino não foi visto mais naquela noite.