segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Divino mato

A circunstância: o pequeno quarto-e-sala (o apartamento fica no centro da confusão da cidade). A única consciência? Alguns olhares, os movimentos lentos e o cuidado com as janelas fechadas. São duas horas da manhã e estão os três ali no meio da "sala do sentados". Acomodam-se como podem em velhos colchões improvisados, em trapos amontoados ao acaso e o outro no canto diagonal dessa sala sem planejamento (como se ninguém vivesse ali), sem vida (como se alguém pudesse viver ali...). Nesse mundo fechado a poucas portas e cheio de meias palavras ditas, mas nem sempre concluídas, são três excentricidades em pleno delírio. A noite é deles.
E inicia.
Estão sentados, estáticos e em desalinho. Estão casuais; poucos são os olhares, e se eles se olham é logo para se riem um do outro numa convulsão tal, numa falta de iniciativa e de tudo. Sim, são parcos e lassos os seus movimentos dessas entidades cósmicas ali travestidas de rebeldia: na sala enfumaçada, tudo se resume a alcançar uma única coisa para o outro – e não é afeto. O passe livre de cada dia que rola de mão em mão, todos os dias, à mesma hora e nessa peça selecionada a dedo por algum fornecedor – eis o único exercício físico desses desvalidos: o tocar de dedos no ar.
E há muita liberdade no ar – disso ninguém duvida – e o espaço que se abre em suas mentes são como campos floridos a viajar pelo monocromático de um trem que mergulha ocasionalmente nas ondas irregulares da última baforada. Alguém pigarreia.
Depois, depois: qualquer assunto é qualquer assunto.
São três da manhã, um repete.
É ontem ou é hoje, um outro pergunta.
Tudo vale (nada pesa) nessa jornada noite adentro que não tem fim, aqui reunidos, nessa sala encravada em algum prédio da cidade que não dorme. Sabem que não precisam de mais nada (nem dormir), e sabem também que nada os tirará dali nas próximas horas, nos próximos dias, talvez numa próxima vida. Contudo, indiferente a esses devaneios, as horas correm, ao mesmo tempo em que as perguntas (vagas) diminuem de intensidade... Tudo é quase sono, nuvem, colina, auge. Alguém se pergunta – agora ninguém responde – não saberemos a pergunta, nem o devaneio. A essa altura já entenderam que não há mais nada para entender.
Apenas buscam a última sensação da noite. E tragam. E voam.
Eles, os adoradores do divino mato.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Volta para mim

Abriu a porta lateral, depois correu a da frente. Caminhou de volta, encostou em seu posto. No amplo espaço diante de si, suspirou pelo quatro cantos da sala vazia. É cedo ainda, e mesmo assim o cheiro rançoso já domina boa parte do ambiente abafado, misturando-se ao restos da última noite (sim, ele dormiu ali mesmo, não voltou para casa). O ranço ainda não espantou os primeiros clientes – eles ainda não chegaram – só há moscas circulando no recinto fechado, agora aberto.
O dia inicia.
Estamos no interior desta cidade qualquer, uma vila, tão distante de qualquer grande cidade que aqui não há nem regras de vigilância sanitária tampouco pessoas – a matéria humana chamada cliente – tal a miséria do lugar. Talvez por isso o homem que se encontra agora postado atrás do balcão possa dizer – e ele fala sozinho – que toda carne de seu comércio é de primeira e que seu maior orgulho é saber que este é o único negócio do gênero neste vilarejo distante.
Vicente é o açougueiro, o dono da casa de carne. É ele o homem que agora está de braços cruzados sobre o balcão, o queixo caído, esperando o primeiro cliente entrar. Aqui ainda sente-se o dono e senhor; é também o balconista e seu próprio contador; o conferencista de rebanhos decadentes que ainda lhe são entregues vez por outra; e é aqui que ele foi por muitos muito o grande confessor, ouvindo as queixas de Capim Grande – este buraco num fim de mundo riscado do mapa. Pouca gente mora aqui na cidade, isso ele sabe (todos sabem), mas isso não importa para quem tem um dia trabalho pela frente independente de quem entrar – às vezes demora – e quem entra lhe parece mesmo desocupado. E são muitos. O único lamento de Vicente, contudo, é outro: que o último grande amor de sua vida esteja bem longe nesse momento, distante e a tantas milhas dessa hospedaria de horrores (alguns chamam assim o seu açougue), que agora ela é apenas uma lembrança para o açougueiro abandonado, esse que vive o desassossego de querer alguém tão próximo... Apeguei-me a elas.
E elas voam.
Circulam por todo o lado desde o instante em que algum resto de carne fica caído pelo balcão do estabelecimento. Ali há vida, nisso Vicente acredita cada vez mais; na carne morta há vida. São poucas as pessoas que ainda compram algum tipo de corte – o balcão anda muito limpo –, mas isso pouco importa porque o seu interesse agora é outro; está ao redor.
Desde o dia em que desistiu de combatê-las, elas viraram suas companheiras e ele foi tomado de amor e gratidão. Estão são, contudo, palavras inadequadas: não há nada mais morto e sem vida do que o ser humano postado ali. Por isso em seu silêncio ele grita ao pé do balcão.
Grita a falta de clientes (essa gente suja), grita a ausência de suas amadas (ingratas), grita para que voltem (será que até elas fugiram?).
Elas, as moscas.