Almoço
In memoriam
Estranhei naquele dia ela ter me convidado para almoçar, entre nós,
algo até então raro. Tinha ela a idade de minha mãe, os seus
cabelos eram os meus cabelos, seu caminhar (eu já havia reparado)
lembrava os passos do jeito de andar que um dia foi de minha mãe –
antes de ela morrer.
Quem me convidou foi Dona Lúcia, ou Lucinha como todos a chamavam na
secção da contabilidade da companhia. Que apareceu à minha frente
no estertor do final da manhã – meio dia cheio de fome – e eu
levei um tremendo susto. Foi logo me convidando, entendi que era
assim meio determinando (afinal ela era a minha chefe):
– Vamos almoçar? Não esquece de levar um documento.
Era mesmo para ser esquisito aquele dia: alguém te convida para
almoçar e no alto dos teus desesperados 32 anos, sim, você já
seria bem capaz de saber que nunca se anda no Centro Histórico desta
barbárie sem portar documentos.
– A identidade, era ela, novamente do seu jeito, sempre rápida e
minuciosa, foi logo me cercando como se já estivesse esperando que
eu abrisse a bolsa, mostrasse a carteira.
Daí apanhou a minha mão.
***
Na mesa, notei que ela me olhava além do que seria recomendável num
almoço entre duas pessoas de idades tão continentais. Queria apenas
me ouvir, revelou. Mas era como se buscasse em mim algum traço
distante. No entanto conhecia-me muito bem desde a formatura em
Ciências Contábeis, quando o seu presente alcançou valores
constrangedores para a ex-estagiária que eu era, recém-contratada
pela WS Auditores. Mas eu estava feliz – e feliz vivi estes últimos
nove anos lá na empresa. Sem percalços ou dificuldades, ali o meu
caminho foi facilitado de forma muito tranquila; a tal ponto de hoje
também ter meus próprios subordinados no mundo das contas e do
realizável. E havia Dona Lúcia, sempre presente, ali próxima,
acompanhando a minha carreira numa distância regulamentar.
Pragmática na orientação, e por isso sempre me pareceu muito
rígida. O afeto, este nunca foi o seu forte.
Até aquele dia.
Quando, terminado o almoço, ela novamente agarrou a minha mão (eu
já não estava mais acostumada aquilo), agarrou de uma forma como
fazia a minha avó (um tempo ficou nisso), e do jeito carinhoso que
só os avós sabem fazer, e em seguida levou-me do restaurante até o
prédio vizinho, bastante conhecido pelas formalidades do seu
negócio, e numa fala alegre picante foi logo dizendo:
– Agora a sobremesa.
O dia era de estranhezas mesmo.
O cartório: prédio de arquitetura ríspida, de interior enxuto e
escuro, local onde a rigidez e o alinhamento do balcão das mesas
contrastava com os excessos de intimidade do tabelião, que ao nos
ver foi assim-sorriso-braços-abertos:
– Então ela resolver vir, Lucinha?
Nada entendi.
Como de resto não entendi a disposição testamentária que me fez
sua única herdeira.
Novembro
de 2016