sexta-feira, 31 de maio de 2024

Era Beatriz



Era Beatriz. Beatriz em 1983. A garota com os olhos apertados que vi escorada no balcão da farmácia era Beatriz. Beatriz da parada 56 do bairro da minha infância. Lá havia um colégio de ensino de segundo grau, como se dizia na época. Todo final de manhã eu aparecia no portão de entrada para acompanhar a saída das colegiais. Eu não trabalhava, tinha a barba por fazer e um Adidas seminovo ano 1982. Alguém sempre me barrava:

Ei, cidadão, não pode entrar. Só quem estuda na escola.

Cinquenta e dois anos falando para vinte e seis: eu não me mexia. Nossos olhares eram carimbos de ódio mútuo. Quando eu finalmente me afastava, seus olhos policiais me acompanhavam.


Hoje não há mais escolas. Todos os terrenos viraram pátio de pequenas indústrias que o tempo tratou de desmantelar. Fábricas e lojas de animais, numa estranha combinação de morte e vida. Os bares, a moralidade da época tratou de enxotar para bem longe. Algumas igrejas substituíram esses lugares.


Há, também, muitas farmácias com gigantescos estacionamentos (só perdem para as pets da região), as lojas são iluminadas, os clientes em filas ordenadas, onde só se pode entrar com roupas descentes. Estava vestindo roupas descentes quando parei aqui com meu carro, portas se abriram, entrei no conforto de um ambiente anticéptico e encontrei os olhos fechados de Beatriz. Beatriz, trinta anos depois; Beatriz quarenta anos depois. Seguro o olhar, ela enfim girar a cabeça em minha direção:

Ei, senhor, não pode ficar aí. Essa fila é só para quem tem câncer crônico.

(Tinham inventado isso. Você fica com a doença um tempo, depois não fica mais.)

Seu jaleco é branco. Seria ela atendente? Tento perguntar alguma coisa, mas as palavras não saem. Também no antigo bairro, no antigo colégio, eu não permanecia muito tempo perto dela, logo atrás dela. Seguia Beatriz apenas algumas quadras. Nunca dobrei em sua rua.

A moça volta a me encarar, mas não me movo.

O senhor não me ouviu?


Baixo a cabeça. Olho para meu cestinho de compras. Nada animador.