sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Resenha de DIÁRIO DA CASTRAÇÃO, de T.S. Marcon



LIVRO: DIÁRIO DA CASTRAÇÃO, DE T.S.MARCON

COLUNA CULT # 648

por Edgar Aristimunho

Em condições normais, todo texto literário tem algo a nos dizer; vai da capacidade do escritor de nos convencer de que as situações descritas são atrativas e que seus personagens têm motivações suficientes para valer a leitura da história. Há, contudo, momentos em que o autor está suficientemente convencido de que seu projeto pode causar impacto no leitor, independente de este saber a fundo as reais e verdadeiras motivações dos personagens. Esta ideia se aplica de modo perfeito e acabado ao último livro lançado pelo escritor caxiense Tiago Marcon. Trata-se de Diário da castração (Gog/Bestiário, 2023), livro que venceu o Prêmio Vivita Cartier 2024, colocando o nome do autor na galeria dos melhores narradores da nova geração gaúcha.


Diário da castração é um livro radical. Em todos os sentidos. A começar pela capa que cria por meio de fotomontagem a figura de um meio homem meio gato sentado ao lado de um quadro de uma chaminé cuja fumaça sobe a parede. A imagem é surrealista; o texto, não. Em Diário da castração estamos diante de um romance que acompanha o diário de homem durante a pandemia da covid-19. A rotina da castração dos contatos sociais – no livro também a castração do gato Camus. A ideia de castração do título tem múltiplos significados para este homem/narrado atacado por um gato e que vive um relacionamento mais ou menos em crescente desmoronamento com sua companheira, K (assim no texto), como se a velha chaminé da foto da capa indicasse o fogo e ao mesmo tempo o fim, dualidade constante em relacionamentos. O livro acompanha os primeiros meses da pandemia até o anúncio da chegada da primeira vacina. Durante a leitura do romance, somos colocados diante de situações tragicômicas, reflexões existenciais sobre o isolamento e situações em que o personagem se coloca em risco na busca de uma medalha de ouro nas suas relações amorosas. Tudo dá certo e tudo dá errado ao mesmo tempo. Chama a atenção no livro de Marcon a extrema precisão das descrições técnicas da vida quotidiana (como se estivéssemos lendo Georg Perec e seus livros As coisas e A vida: modo de usar), a eloquente e afetiva referência à cultura pop (ao melhor estilo de Roberto Drummond em Sangue de Coca-Cola ou Reinaldo Moraes em seu Tanto faz ou abacaxi), para chegarmos ao registro mais perene, a viagem com fotos, os circuitos da memória e da perdição do personagem, enfim, a busca (exatamente a busca de um memorialista como G.W. Sebald e seu Austerlitz). Um livro rico em referências e personagens nonsense. Estão lá: o Manco, o Vacaria, a Charlene, o Almeida e a vizinha do 53. Ninguém disse, mas há algo de Nelson Rodrigues em Tiago Marcon.


O escritor e arquiteta Tiago Sozo Marcon (1975, Caxias do Sul), ou T.S. Marcon como é conhecido no meio literário, é aluno formado na Curso de Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica-RS, concebida por Luiz Antonio de Assis Brasil e até hoje um trabalho pioneiro no cenário nacional. O curso, que começou como oficina literária, já contabiliza mais de 40 anos de existência e formou, entre outros, premiados escritores de projeção nacional como Paulo Scott, Veronica Stigger, Daniel Galera, Carol Bensimon, Michel Laub, entre outros. Em seu livro de estreia Deus veste legging (2015), crônicas publicadas no jornal A Gazeta de Caxias do Sul, o escritor já mostrava toda sua verve sarcástica, com títulos divertidos como “Pequeno dicionário prático para céticos”, “Em defesa do salame”, “O reino do grande esgoto” e “Meu pai tinha uma Caravan”. Sobre o autor, seguimos as palavras do escritor Amilcar Bettega, escritor cuja obra foi premiada internacionalmente e que também foi aluno de Assis Brasil: “Estamos diante de um autor que domina perfeitamente os códigos da ficção e que deles se serve para nos fazer pensar sobre a nossa própria condição. Em uma palavra: literatura. Mas se quisermos outra, aqui está: investigação é também uma palavra adequada. Por trás do discurso bem-humorado e autoirônico do narrador de Diário da Castração, está uma profunda investigação sobre o desejo, as forças que o impulsionam e que o reprimem. Uma investigação que, pela arte narrativa de T. S. Marcon, vai ainda mais além e nos leva de cheio a um dos temas mais caros à literatura: o amor. Afinal, é sempre disto que falamos quando falamos de todo o resto”. Eis um livro corajoso, porque sua matéria é também autoficção. Nas palavras de T.S. Marcon, “o momento do livro vir à tona é sempre um ato de coragem”.


Eis um livro incisivo. De forma justa, a obra foi premiada. E, sim, um texto com algo a dizer. Dito pelas mãos e pela escrita de uma artista que tem a capacidade de criar efeitos inesperados no leitor: o paradoxo seguido do contrassenso, sem perder a ternura. Que traz o drama da pandemia ao mesmo tempo que desperta nossa curiosidade para o centro da trama com personagens impagáveis. E que ao final nos deixa perguntas sobre o futuro, sobre nosso espanto e trivialidade, sobre a profundidade de qualquer experiência. Que livro!


Boa leitura.

CULT # 648 – 07/08/2024

Esta coluna foi publica na Coluna Cul da Intranet do MPF em https://novoportal.mpf.mp.br/novaintra/intranets/prr4/admin/noticias-1/2024/cult-livro-2013-diario-da-castracao

Para conhecer mais o escritor, esta entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=LoivK4V_aGU&t=325s