Adiante,
outra descida, tenho a impressão de que é a última, olho a redor,
mas quem me confirma isso é o carro, este alugado de quatro portas e
baixo orçamento que retirei na locadora há novecentos
quilômetros atrás, e que, no entanto, começa a falhar, sei, não
era para ter ido tão longe, desrespeitei todos os limites –
inclusive os contratuais –, e agora as montanhas surgem à minha
frente, alterno o olhar entre os instrumentos incertos
do carro e
o perigoso marcador de gasolina a lembrar-me de
histórias e
de
pessoas que ficaram perdidas no meio do nada, sem nenhum
tostão no bolso ou conseguir
falar nada
da
língua local, essas coisas que acontecem em filmes, ou são lidas em
livros, mas a minha vida não se parece com nenhum romance – eu
estava colocando minhas últimas economias naquela viagem –, onde
mesmo?, me pergunto, enquanto as mãos continuavam
agarradas
no
volante,
a
mente dispersa, resolvo
abaixar-me para buscar o maço de cigarros no porta-luvas, e
então sinto
o solavanco, algo no piso da estrada se modifica,
o terreno oscila,
há
desequilíbrio
latente
e
a direção balança,
escapa
de minhas mãos, o carro desce
no acostamento, e
enquanto
toda
esta
desgraça é narrada em
primeira pessoa,
minha reação formal
e
imediata é
brecar,
momento em que a
demora dos freios em responder surge
diante de mim como natureza sólida, exata, peremptória,
e
o
carro desliza,
estaciona
e,
aos pouco, o motor morre, momento em que olho pelo
quadrado do vidro dianteiro, lá
adiante poeira
cinza-azulada
de tons terrais,
tufo
girando à minha frente, e
quando tudo baixa, percebo
com nitidez as linhas vazias
desta estrada enfadonha à minha frente; ao lado, o desenho da
cordilheira tomando
visualmente
tudo ao
redor, mas
segue até
terminar
adiante,
onde, ao
fundo, em
cenário maciço com
cara de poucos amigos encerra tudo,
tanto
tempo rodando e eu ainda não havia encontrado o fim daquela estrada
– não
havia encontrado nenhum
fim
–,
e
foi só então que entendi
o
drama, o
carro ficaria sem gasolina nos próximos quilômetros, pergunto,
o
que eu estava fazendo ali, naquele
nada?, súbito
resolvo
espichar
os olhos sobre o capô
dianteiro, ele
sempre esteve
à
minha frente, mesmo
quando eu não esperava nada dele, e agora ele esconde um fogo morto,
reparo que, alguns
metros adiante, a poeira espalhou-se com o vento, e foi só então
que pude ver a garota, desenho
e desejo, liso contorno dourado em paisagem árida, e ela estava
parada, é
possível até que estivesse assustada com
a manobra involuntária que
fiz com o
carro, imprudência,
deduzi que ela vinha
no sentido contrário, por pouco não a atropelei neste
acostamento,
retiro, descarte, expurgo, um pouco a minha
vida, aquilo
que eu carregava
nas
costas como fardo
pesado,
sim,
a
garota
tinha
as roupas sujas e
seus
cabelos claros estavam cobertos de poeira; ela mexia neles tentando
remover
a massa cinzenta,
e
mesmo
daquela
distância era possível para
cada um
de
nós olhar
na direção do outro, não
tive pressa, esperei
ela
fazer o primeiro movimento conciliatório,
pois
sua
forma de encarar era
assustada
e
causou-me certo
estranhamento
de memórias, pois
sem aparente explicação comecei a chorar, confesso
que chorei,
devo
ter ficado um tempo nesse
estado da alma,
porque o meu rosto estava molhado, preenchido
com linhas assimétricas, uma pasta úmida misturada à poeira que
entrou irresoluta
pela
janela aberta do carro, foi
neste instante que
ela
começou a movimentar-se, aproximou-se
em passos lentos, abaixou a cabeça e
posicionou o rosto na fresta da janela do passageiro,
mostrando
seus
olhos e perguntando
se estava tudo bem comigo,
claro,
numa língua rápida, mas eu ainda estava agarrado
de maneira firme ao volante, tensão
pura em meus punhos e mãos, de modo que fiquei
sem dizer nada por um tempo,
mentalmente
a
desenhar o seu rosto, incrível
a semelhança dela com outras arquiteturas emocionais, em terras
distantes, onde não havia mais
montanhas nem
sentimentos ao
meu redor, muito
menos bilhetes ou qualquer tipo de consideração familiar,
protocolos, educação, enfim, eu
estava muito longe de casa, era
outro deserto, rabisco, tomo
a iniciativa de
reagir quando ela começa
a mexer-se
para ir embora, gritei,
chamei-a
de Paula, ela
voltou
ainda uma vez até
a
janela e me
corrigiu
dizendo que seu nome era Samantha, acentuando
a primeira sílaba, Sá, para em seguida contar
que estava deixando a casa dos pais e indo em direção à capital da
província, daí
sacudindo
a cabeça porque, afinal, ela
percebeu que eu não
conseguiria
sair daquela
apatia empoeirada sem
o seu consenso visual,
razão
pela qual
resolveu
falar novamente, perguntou
se eu não poderia levá-la até aquela cidade, ato
contínuo, concordei,
mesmo sabendo que teria que retornar na direção contrária ao meu
destino, qual
mesmo?, e
num
jato, nem
tão rápido como pode parecer,
religuei
o motor do automóvel, aquela
cidade ficava longe, havia poucas
localidades no caminho, e
foi assim que abri
a porta, ela entrou agarrada à mochila, trazendo junto um bocado de
poeira e um tímido
sorriso adolescente, dispersando
minhas últimas dúvidas,
manobrei
rápido,
dei a volta subindo novamente no
áspero do
asfalto, tudo muito lento, sim,
o
carro não tinha força motriz, eu
ainda estava assustado com
a máquina,
constatação
que não me impediu de olhar
pelo retrovisor: a cordilheira ficaria
para trás, respeitei
seu tempo, procurei
não fazer nenhuma pergunta imediata, viajamos
em silêncio,
teríamos
ainda
muito tempo pela frente, e
eu teria uma filha por alguns quilômetros,
até acabar a gasolina.
Julho
de 2023