sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Resenha de DIÁRIO DA CASTRAÇÃO, de T.S. Marcon



LIVRO: DIÁRIO DA CASTRAÇÃO, DE T.S.MARCON

COLUNA CULT # 648

por Edgar Aristimunho

Em condições normais, todo texto literário tem algo a nos dizer; vai da capacidade do escritor de nos convencer de que as situações descritas são atrativas e que seus personagens têm motivações suficientes para valer a leitura da história. Há, contudo, momentos em que o autor está suficientemente convencido de que seu projeto pode causar impacto no leitor, independente de este saber a fundo as reais e verdadeiras motivações dos personagens. Esta ideia se aplica de modo perfeito e acabado ao último livro lançado pelo escritor caxiense Tiago Marcon. Trata-se de Diário da castração (Gog/Bestiário, 2023), livro que venceu o Prêmio Vivita Cartier 2024, colocando o nome do autor na galeria dos melhores narradores da nova geração gaúcha.


Diário da castração é um livro radical. Em todos os sentidos. A começar pela capa que cria por meio de fotomontagem a figura de um meio homem meio gato sentado ao lado de um quadro de uma chaminé cuja fumaça sobe a parede. A imagem é surrealista; o texto, não. Em Diário da castração estamos diante de um romance que acompanha o diário de homem durante a pandemia da covid-19. A rotina da castração dos contatos sociais – no livro também a castração do gato Camus. A ideia de castração do título tem múltiplos significados para este homem/narrado atacado por um gato e que vive um relacionamento mais ou menos em crescente desmoronamento com sua companheira, K (assim no texto), como se a velha chaminé da foto da capa indicasse o fogo e ao mesmo tempo o fim, dualidade constante em relacionamentos. O livro acompanha os primeiros meses da pandemia até o anúncio da chegada da primeira vacina. Durante a leitura do romance, somos colocados diante de situações tragicômicas, reflexões existenciais sobre o isolamento e situações em que o personagem se coloca em risco na busca de uma medalha de ouro nas suas relações amorosas. Tudo dá certo e tudo dá errado ao mesmo tempo. Chama a atenção no livro de Marcon a extrema precisão das descrições técnicas da vida quotidiana (como se estivéssemos lendo Georg Perec e seus livros As coisas e A vida: modo de usar), a eloquente e afetiva referência à cultura pop (ao melhor estilo de Roberto Drummond em Sangue de Coca-Cola ou Reinaldo Moraes em seu Tanto faz ou abacaxi), para chegarmos ao registro mais perene, a viagem com fotos, os circuitos da memória e da perdição do personagem, enfim, a busca (exatamente a busca de um memorialista como G.W. Sebald e seu Austerlitz). Um livro rico em referências e personagens nonsense. Estão lá: o Manco, o Vacaria, a Charlene, o Almeida e a vizinha do 53. Ninguém disse, mas há algo de Nelson Rodrigues em Tiago Marcon.


O escritor e arquiteta Tiago Sozo Marcon (1975, Caxias do Sul), ou T.S. Marcon como é conhecido no meio literário, é aluno formado na Curso de Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica-RS, concebida por Luiz Antonio de Assis Brasil e até hoje um trabalho pioneiro no cenário nacional. O curso, que começou como oficina literária, já contabiliza mais de 40 anos de existência e formou, entre outros, premiados escritores de projeção nacional como Paulo Scott, Veronica Stigger, Daniel Galera, Carol Bensimon, Michel Laub, entre outros. Em seu livro de estreia Deus veste legging (2015), crônicas publicadas no jornal A Gazeta de Caxias do Sul, o escritor já mostrava toda sua verve sarcástica, com títulos divertidos como “Pequeno dicionário prático para céticos”, “Em defesa do salame”, “O reino do grande esgoto” e “Meu pai tinha uma Caravan”. Sobre o autor, seguimos as palavras do escritor Amilcar Bettega, escritor cuja obra foi premiada internacionalmente e que também foi aluno de Assis Brasil: “Estamos diante de um autor que domina perfeitamente os códigos da ficção e que deles se serve para nos fazer pensar sobre a nossa própria condição. Em uma palavra: literatura. Mas se quisermos outra, aqui está: investigação é também uma palavra adequada. Por trás do discurso bem-humorado e autoirônico do narrador de Diário da Castração, está uma profunda investigação sobre o desejo, as forças que o impulsionam e que o reprimem. Uma investigação que, pela arte narrativa de T. S. Marcon, vai ainda mais além e nos leva de cheio a um dos temas mais caros à literatura: o amor. Afinal, é sempre disto que falamos quando falamos de todo o resto”. Eis um livro corajoso, porque sua matéria é também autoficção. Nas palavras de T.S. Marcon, “o momento do livro vir à tona é sempre um ato de coragem”.


Eis um livro incisivo. De forma justa, a obra foi premiada. E, sim, um texto com algo a dizer. Dito pelas mãos e pela escrita de uma artista que tem a capacidade de criar efeitos inesperados no leitor: o paradoxo seguido do contrassenso, sem perder a ternura. Que traz o drama da pandemia ao mesmo tempo que desperta nossa curiosidade para o centro da trama com personagens impagáveis. E que ao final nos deixa perguntas sobre o futuro, sobre nosso espanto e trivialidade, sobre a profundidade de qualquer experiência. Que livro!


Boa leitura.

CULT # 648 – 07/08/2024

Esta coluna foi publica na Coluna Cul da Intranet do MPF em https://novoportal.mpf.mp.br/novaintra/intranets/prr4/admin/noticias-1/2024/cult-livro-2013-diario-da-castracao

Para conhecer mais o escritor, esta entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=LoivK4V_aGU&t=325s

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Era Beatriz



Era Beatriz. Beatriz em 1983. A garota com os olhos apertados que vi escorada no balcão da farmácia era Beatriz. Beatriz da parada 56 do bairro da minha infância. Lá havia um colégio de ensino de segundo grau, como se dizia na época. Todo final de manhã eu aparecia no portão de entrada para acompanhar a saída das colegiais. Eu não trabalhava, tinha a barba por fazer e um Adidas seminovo ano 1982. Alguém sempre me barrava:

Ei, cidadão, não pode entrar. Só quem estuda na escola.

Cinquenta e dois anos falando para vinte e seis: eu não me mexia. Nossos olhares eram carimbos de ódio mútuo. Quando eu finalmente me afastava, seus olhos policiais me acompanhavam.


Hoje não há mais escolas. Todos os terrenos viraram pátio de pequenas indústrias que o tempo tratou de desmantelar. Fábricas e lojas de animais, numa estranha combinação de morte e vida. Os bares, a moralidade da época tratou de enxotar para bem longe. Algumas igrejas substituíram esses lugares.


Há, também, muitas farmácias com gigantescos estacionamentos (só perdem para as pets da região), as lojas são iluminadas, os clientes em filas ordenadas, onde só se pode entrar com roupas descentes. Estava vestindo roupas descentes quando parei aqui com meu carro, portas se abriram, entrei no conforto de um ambiente anticéptico e encontrei os olhos fechados de Beatriz. Beatriz, trinta anos depois; Beatriz quarenta anos depois. Seguro o olhar, ela enfim girar a cabeça em minha direção:

Ei, senhor, não pode ficar aí. Essa fila é só para quem tem câncer crônico.

(Tinham inventado isso. Você fica com a doença um tempo, depois não fica mais.)

Seu jaleco é branco. Seria ela atendente? Tento perguntar alguma coisa, mas as palavras não saem. Também no antigo bairro, no antigo colégio, eu não permanecia muito tempo perto dela, logo atrás dela. Seguia Beatriz apenas algumas quadras. Nunca dobrei em sua rua.

A moça volta a me encarar, mas não me movo.

O senhor não me ouviu?


Baixo a cabeça. Olho para meu cestinho de compras. Nada animador.


sexta-feira, 28 de julho de 2023

Cordilheira

 

Adiante, outra descida, tenho a impressão de que é a última, olho a redor, mas quem me confirma isso é o carro, este alugado de quatro portas e baixo orçamento que retirei na locadora há novecentos quilômetros atrás, e que, no entanto, começa a falhar, sei, não era para ter ido tão longe, desrespeitei todos os limites – inclusive os contratuais –, e agora as montanhas surgem à minha frente, alterno o olhar entre os instrumentos incertos do carro e o perigoso marcador de gasolina a lembrar-me de histórias e de pessoas que ficaram perdidas no meio do nada, sem nenhum tostão no bolso ou conseguir falar nada da língua local, essas coisas que acontecem em filmes, ou são lidas em livros, mas a minha vida não se parece com nenhum romance – eu estava colocando minhas últimas economias naquela viagem –, onde mesmo?, me pergunto, enquanto as mãos continuavam agarradas no volante, a mente dispersa, resolvo abaixar-me para buscar o maço de cigarros no porta-luvas, e então sinto o solavanco, algo no piso da estrada se modifica, o terreno oscila, desequilíbrio latente e a direção balança, escapa de minhas mãos, o carro desce no acostamento, e enquanto toda esta desgraça é narrada em primeira pessoa, minha reação formal e imediata é brecar, momento em que a demora dos freios em responder surge diante de mim como natureza sólida, exata, peremptória, e o carro desliza, estaciona e, aos pouco, o motor morre, momento em que olho pelo quadrado do vidro dianteiro, lá adiante poeira cinza-azulada de tons terrais, tufo girando à minha frente, e quando tudo baixa, percebo com nitidez as linhas vazias desta estrada enfadonha à minha frente; ao lado, o desenho da cordilheira tomando visualmente tudo ao redor, mas segue até terminar adiante, onde, ao fundo, em cenário maciço com cara de poucos amigos encerra tudo, tanto tempo rodando e eu ainda não havia encontrado o fim daquela estrada – não havia encontrado nenhum fim, e foi só então que entendi o drama, o carro ficaria sem gasolina nos próximos quilômetros, pergunto, o que eu estava fazendo ali, naquele nada?, súbito resolvo espichar os olhos sobre o capô dianteiro, ele sempre esteve à minha frente, mesmo quando eu não esperava nada dele, e agora ele esconde um fogo morto, reparo que, alguns metros adiante, a poeira espalhou-se com o vento, e foi só então que pude ver a garota, desenho e desejo, liso contorno dourado em paisagem árida, e ela estava parada, é possível até que estivesse assustada com a manobra involuntária que fiz com o carro, imprudência, deduzi que ela vinha no sentido contrário, por pouco não a atropelei neste acostamento, retiro, descarte, expurgo, um pouco a minha vida, aquilo que eu carregava nas costas como fardo pesado, sim, a garota tinha as roupas sujas e seus cabelos claros estavam cobertos de poeira; ela mexia neles tentando remover a massa cinzenta, e mesmo daquela distância era possível para cada um de nós olhar na direção do outro, não tive pressa, esperei ela fazer o primeiro movimento conciliatório, pois sua forma de encarar era assustada e causou-me certo estranhamento de memórias, pois sem aparente explicação comecei a chorar, confesso que chorei, devo ter ficado um tempo nesse estado da alma, porque o meu rosto estava molhado, preenchido com linhas assimétricas, uma pasta úmida misturada à poeira que entrou irresoluta pela janela aberta do carro, foi neste instante que ela começou a movimentar-se, aproximou-se em passos lentos, abaixou a cabeça e posicionou o rosto na fresta da janela do passageiro, mostrando seus olhos e perguntando se estava tudo bem comigo, claro, numa língua rápida, mas eu ainda estava agarrado de maneira firme ao volante, tensão pura em meus punhos e mãos, de modo que fiquei sem dizer nada por um tempo, mentalmente a desenhar o seu rosto, incrível a semelhança dela com outras arquiteturas emocionais, em terras distantes, onde não havia mais montanhas nem sentimentos ao meu redor, muito menos bilhetes ou qualquer tipo de consideração familiar, protocolos, educação, enfim, eu estava muito longe de casa, era outro deserto, rabisco, tomo a iniciativa de reagir quando ela começa a mexer-se para ir embora, gritei, chamei-a de Paula, ela voltou ainda uma vez até a janela e me corrigiu dizendo que seu nome era Samantha, acentuando a primeira sílaba, Sá, para em seguida contar que estava deixando a casa dos pais e indo em direção à capital da província, daí sacudindo a cabeça porque, afinal, ela percebeu que eu não conseguiria sair daquela apatia empoeirada sem o seu consenso visual, razão pela qual resolveu falar novamente, perguntou se eu não poderia levá-la até aquela cidade, ato contínuo, concordei, mesmo sabendo que teria que retornar na direção contrária ao meu destino, qual mesmo?, e num jato, nem tão rápido como pode parecer, religuei o motor do automóvel, aquela cidade ficava longe, havia poucas localidades no caminho, e foi assim que abri a porta, ela entrou agarrada à mochila, trazendo junto um bocado de poeira e um tímido sorriso adolescente, dispersando minhas últimas dúvidas, manobrei rápido, dei a volta subindo novamente no áspero do asfalto, tudo muito lento, sim, o carro não tinha força motriz, eu ainda estava assustado com a máquina, constatação que não me impediu de olhar pelo retrovisor: a cordilheira ficaria para trás, respeitei seu tempo, procurei não fazer nenhuma pergunta imediata, viajamos em silêncio, teríamos ainda muito tempo pela frente, e eu teria uma filha por alguns quilômetros, até acabar a gasolina.



Julho de 2023

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O notório problema

 

Durante dias fiquei aguardando ela chegar. Primeiro, vieram os homens, as máquinas e equipamentos, a sequência de reformas. Duas semanas depois, tudo estava concluído. Nem o lixo se enxergava, socado como ficou dentro de grandes caçambas de resíduos. Aquela residência cheirava à nova, vista daqui. Notei, contudo, que havia movimento na casa no início da semana seguinte. Eram os jardineiros, sua equipe, e eles vieram em muitos e começaram com o barulho de cortadeiras, tesouras de longo alcance, sopradores, rastelo. O sossego sobreveio um dia antes do feriado prolongado de Carnaval. A paisagem mudara, a cidade ficara vazia, eu já não tinha para quem olhar pela janela. A monotonia foi cortada pela assunção iluminada da dona. Chegou em caminhonete alta, desceu, abriu portas e janelas enquanto desfazia malas e sacolas, mas foi com as mesmas malas e nenhuma sacola que, poucas horas depois, ela partiu. A tempestade sossegou dentro de mim. Um silêncio constrangedor tomou conta daquele trecho da rua, e assim continuou pelos três primeiros dias de folia. No quarto dia, a vassoura começou a desflorar o pátio carregado de folhas, e tudo isso – pasmem – às sete da manhã, e foi naquele momento que eu vi a moça pela primeira vez, ou a ilusão de ver uma moça, cabelos longos como imaginei, recato, precisão, passos de uma sambista contida, a ilusão carnavalesca de um folião recolhido em seu ambiente, ponto de vista restrito, quadrado fechado, sentado de vez nestas rodas, num ângulo feito de lentes, porque em verdade, percebi, ela estava apenas recolhendo o lixo, varrendo as folhas, esfregando os vidros, subindo e descendo as escadas externas da casa reformada. Marquei o dia: era terça-feira no Méier, fevereiro ou março. De uma das grandes gavetas de apoio, localizada aqui ao lado da janela onde me encontrava, comecei a retirar, um a um, os equipamentos. Começava ali o meu notório problema.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Embarcadeiro

 [08:08, 31/12/2022] Edgar Aristimunho: DIÁRIOS OCASIONAIS. Ontem à noite saímos de casa depois de tanto tempo. Fomos no Embarcadeiro, Cais Mauá, ali no Centro Histórico. Ideia de Elisa, esta saída. Sextou, né?, ela disse. Jantamos no restaurante Isoj, comida japonesa com peruana. São pratos que Mateus pode comer tranquilo. E ele adora. Na mesa, lembramos do tempo em que Mateus passou a adorar comida japonesa, aos 4 anos, em São Paulo, com os tios e a avó materna. Memórias boas. Rimos. Noite linda e agradável. Merecíamos.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

O pente

Sentei-me no parque hoje à tarde. Cansei de olhar aquelas árvores do alto de meu prédio, dois quarteirões adiante, e resolvi quebrar silêncio desse resto do dia. Desci, atravessei a grande avenida, cruzei um trecho de terra até encontrar um banco livre; depois sentei-me. Por um instante senti a harmonia dos passos daqueles que cruzavam pelas pequenas vias, caminhos, bosques.

O silêncio era o mesmo de outras esperas, quando ela chegava com seus longos cabelos esvoaçantes oxidados pelos raios gelados do começo da primavera fria de Montevidéu. Então ela abria a bolsa, retirava de dentro uma escova de cabelo e começava a erguer a lenta obra que seria o seu penteado. Nesse processo, ficávamos um longo tempo sem nos olharmos, como se tudo já tivesse sido combinado. Ali começava nosso encontro, sem palavra, apenas sinais, códigos, parábolas de braços entrelaçados, dali até a rua das obscuridades.

Fui acordado pelo indivíduo. Sem aparente razão, ele sentou-se ao meu lado, mesmo percebendo, naquele instante, que o parque começava a ficar deserto. Quanto tempo fiquei em lembranças de meu tempo com ela? Também sem nenhuma cerimônia ele retirou do bolso interno do casado um pequeno pente, de aparência escurecida, gasto pelo tempo. Seus cabelos eram secos, os movimentos ríspidos, lentos e ondulados, mas nem cuspindo ele conseguia avançar no trabalho. No primeiro gesto mais brusco, o pente rachou.

Pus a mão no bolso de minha calça de sarja e lhe alcancei o meu pente, lembro, presente de nosso primeiro encontro secreto. Apanhou o objeto, examinou-o por todos os ângulos, virando-se, inclusive, em direção aos últimos raios de sol, como se examinasse um tesouro (a cor dourada do objeto criava essa sensação). Bateu as duas mãos contra o objeto, assoprou-o como um Deus dos Ventos e o colocou no bolso interno de seu surrado paletó.

Pensei em contar-lhe sobre aquele presente… não tive tempo.

Levantou-se e foi embora. Como chegou, como saiu.

Deixei-o seguir. Quando ele já ia longo, levantei-me e segui em frente, vencendo as alamedas e a felicidade dos que estavam no parque àquela hora. Olhei ainda uma vez em direção ao sol: ele caía atrás das últimas árvores. Esfriava. Instantes depois, retornei ao apartamento gelado em minhas recordações, venci o longo corredor de parquet, abri a porta do banheiro e aproximei-me do espelho. Meus cabelos estavam em desordem. Lamentei ter deixado com o desconhecido o presente que ela me dera.

Eu estava sem nenhum pente.


sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Harmonia

 

No meio da tarde, levantei-me, desci as escadas e fui em direção ao parque defronte ao escritório. Ao entrar no perímetro do descampado, deparei-me com um cão de grande porte. Ele interrompeu a sua corrida, parou diante de mim, olhar maciço. Senti sua respiração na ponta do meu terno. Em seguida me cheirou. A fragrância dos perfumes da gaveta da minha mesa; a falta de banho; o café recém-torrado na cozinha do décimo segundo andar, algo nele rodeava dentro de mim.

Larguei a faca.

O cão lambeu as últimas linhas vermelhas daquela lâmina.

Virei-me. Olhei ainda uma vez, imaginando em que parede ficar o almoxarifado, suas caixas, o volume caído no lado direito da sala. Eu já não tinha motivos para retornar àquele prédio. Senti a harmonia dos passos quando segui em frente, vencendo alamedas daquele parque.

Agosto de 2022.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Gomes

 

Dá trabalho ter mais de uma mulher – os mil e seiscentos reais de salário e a jornada de onze horas de trabalho lhe diziam; percorrer uma casa a cada noite, também. Sopas em dias frios, comida nova (mais raro) ou requentada (mais frequente), jantares na esquina, sanduíches rápidos no Tonho’s Bar, e toda sorte de improviso faziam de seu estômago o mais judiado de toda construção civil de São Paulo. Magro, consumido pelos dias e noites, sua energia era pouca, e nas poucas horas livres, as solicitações dos colegas eram muitas (negava todas). Por tudo isso ele vivia a sorte e o lastro dos relâmpagos que antecedem a tempestade dos grandes amores: quatro amantes pareciam muito, era o que ele pensava quando se deparou com a quinta no mercadinho da esquina. “Lucinda e os lençóis”, foi logo maquinando. Como conseguiria administrar tantas visitas? E como se despedir delas sem que vizinhos o vissem? Eram perguntas que ele fazia para si. Seus colegas de obra desconfiavam daquele homem que não contava vantagem nenhuma. Sozinho no empreendimento, martelando paredes o dia inteiro e bastante esquivo às perguntas, era ainda mais econômico nas respostas. Independente dos comentários e das perguntas, todas as noites ele se dirigia a um código de endereçamento postal diferente. Era visto em casas de cores incomuns, localizadas em ruas ermas e distantes, longe dos olhos alheiros e de sua casa, sim, todo mundo tem uma casa. Nessas andanças, estava sempre rodeando pelo perigo dos latidos dos cães. Sua rotina era o troca-troca entre jantares e lençóis. No dia seguinte, silêncio.


Lucinda, a quinta amante, sempre acreditou ser a primeira (e única), até o dia em que descobriu que não era a única (nem a primeira). Descobriu e tomou a decisão. Mas não contou para ninguém (nem podia), afinal, ela não conhecia as outras. Esperou a terça-feira, o seu dia.

No outro dia – e no restante daquela e da outra semana – as residências da vizinhança amanheceram cultivadas em seus jardins com pedaços dele. Foi a insistência dos cães – esses farejadores da miséria humana – que denunciou o silêncio de tal barbárie. A polícia foi chamada.


Nenhum calmante foi encontrado nas gavetas ou nos armários da casa de Lucinda, mas quem cruzasse por ela na rua – e os vizinhos não tiveram notícias suas por longos dias – certamente diria “ali vai uma mulher feliz”. Também em outro lugar, e pelo restante daqueles dias, foram ouvidos tímidos comentários dos colegas do pedreiro sumido, a se perguntarem, afinal, que raio de tanta sorte Deus destina a um homem só?


Agora eram cinco, por etapas, os pedaços encontrados deste homem.

Gomes.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Montevidéu

[23:40, 28/02/2022] Edgar Aristimunho: DIÁRIOS OCASIONAIS. Lendo “A uruguaia”, do escritor argentino Pedro Mairal. O personagem é um escritor argentino quarentão meio em crise, que se apaixona por uma garota uruguaia. O ritmo de sua vida balança entre o trágico e o cômico -- e então ele decide viajar atrás dela na capital do Uruguay. Creio não haver redenção para ele ao final. A boa literatura argentina que o diga -- eis a escrita de Mairal. Faltam-me vinte páginas para concluir a leitura do livro. À tarde, troquei as páginas finais e optei sentar-me em frente dela para passar creme hidratante nos pés de minha amada. Tal como Lucas Pereyra, o protagonista do grotesco, escolhi o lugar impróprio e a hora errada. No meio da tarde e na área aberta da casa de meus pais -- e isto em dia de visita. Enquanto conversávamos, eu viajava naqueles pés, nas colinas da área central e pelas alamedas da memória: minha Montevidéu era cheia de curvas e lembranças amorosas. Lá vivemos a viagem de um grande amor no início do namoro. Fico imaginando o que o meu pai, Senhor José Edgar, deveria estar pensando naquela hora, ele, um homem que viveu a vida dura das estradas e teve poucos aconchegos longe de casa. A cena bem serviria para o enredo de um curta-metragem sobre a vida e a passagem do tempo, mesmo que seja sob o olhar metálico de um pai desconfiado. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Maurílio

 

Quarenta minutos de caminhada e o amor escolher de acabar daquela maneira, no meio da Avenida Presidente Franklin Roosevelt, Quarto Distrito, Capital, nem há nada de tão especial ou romântico neste nome, um presidente, já sei, mas sou uma universitária, quer dizer uma recém-formada que veio até este lugar em busca de um emprego, e quero pensar que não há nada de extraordinário em descobrir que Maurílio não daria, nunca deveria ter confiado nele, o primo deslumbrado, e, no entanto, foi preciso caminhar bons quarteirões para descobrir um pateta ao meu lado, começou quando o convidei, hoje cedo, para me acompanhar naquela seleção de emprego, o cara tinha chegado do interior dia atrás e estava hospedado lá em casa, e foi aquilo, as conversas para atualizar sobre o pessoal “lá de fora”, galinhada no sábado, domingo Fantástico, me disse que ficou meio assustado aqui na capital, outro dia bateu à porta do meu quarto para confessar que ficou encantado com o Bairro Santa Maria Goretti, diga, quem é que fica encantado com o Santa Maria Goretti?, Deus!, e daqui a pouco descubro que Maurílio ficou dando voltas por aí e fez amigos nos lugares errados, a turma barra do IAPI, os caras pra lá de mal-encarados, então convidei meu parente de Bom Princípio para ver se ele me ajudava, eu precisava trabalhara, fazer algo longe de casa, no início, era algo mais para sair um pouco da barra da saia da minha mãe, então aproveitei ontem à noite, coloquei uma camisola e bati no quarto de Maurílio, disse-lhe que eu precisava arranjar um emprego, casamento, casa, dinheiro para o aluguel, claro, um pouco mais de liberdade (nem sei se ele sabe o que é isso), contei-lhe como era difícil para uma mulher conseguir um emprego de contabilidade em Porto Alegre nestes tempos, os homens tomavam conta de tudo, Maurílio se resumiu a perguntar por que escolhi contabilidade, então lhe expliquei como foi que tinha feito cinco anos atrás, um domingo abri o jornal, procurei bem no caderno dos classificados, quando comecei a contar ele me interrompeu “quem é que procura um curso, uma faculdade apenas pelo número de anúncios nos classificados do jornal?”, expliquei que minha mãe não havia gostado nenhum um pouco do meu pragmatismo germânico, isso de dizer que é filho de pai da colônia, mas minha mãe é brasileira, ela queria outra coisa para mim, enfermagem, sei lá, na época segurei as páginas do classificado na mão, mostrei a ela e respondi “que se tem emprego eu consigo”, e eu estava prestes a conseguir a vaga, estava decidida, eu pedi para Maurílio me acompanhar, era longe, noutro bairro, já tínhamos saído de casa fazia quarenta minutos, agora já estávamos perto, a duas quadras do escritório, Maurílio veio comigo, aquele molenga poderia servia de apoio, sabe-se lá quem eu vou encontrar naquele escritório de contadores, o casarão estava lá do outro lado da rua, a placa anunciava o nome da firma, apontei a ele o local, e quando fui agarrar o braço de Maurílio para atravessarmos a rua, notei que ele ficou preso na calçada, virou-se, desprendeu-se de mim e já caminhava no sentido contrário, passou a falar, mudou a voz, ficou elétrico, infantil, meio eufórico demais para oito da manhã, e depois me disse “espera aí um pouquinho”, eu já sabia, o sol batia naquela lataria dourada e sua reação foi imediata, ele não conhecia muito bem a cidade grande, carros, ônibus, linhas exclusivas, prédios, sinaleiras, e agora aquele Ford Galaxie novinho, brilhando estacionado na altura do número dois mil e quarenta e dois da avenida do presidente americano, eu olhei na direção do escritório, dava para ver o tamanho da fila de candidatos, Maurílio ficou rodeando aquele exemplar poderoso, veículo amigo da indústria do petróleo, o Presidente Geisel tinha falado da Crise de 1974, e eu só sei agora que era esse o nome do carro porque ele gritou o nome do carro, depois: “na minha cidade não tem isso. Um Galaxie!”, e foi aí que eu percebi o quanto ele era um deslumbrado, um inútil deslumbrado, e descobri que ele não me ajudaria, nem para namorado servia, porque pensei isso algum dia, eu só queria chegar naquele emprego com meu namorado, alguém que se parecesse minimamente com um namorado, eu já tinha imaginado que encontraria uma quantidade absurda de homens na seleção, a fila não mentia, as aulas na Faculdade de Contabilidade não deixaram dúvidas, a formatura, eu sozinha no meio dos homens, este universo dos contadores não é para mulheres, meu pai sempre avisou, mas o meu pai nunca chegou a ver sua única filha formar-se na Universidade Federal, morreu dois dias antes, e agora o meu instinto está me dizendo que eu não deveria atravessar esta avenida, não sozinha, nunca sozinha, mesmo assim o fiz, e agora na fila todos me olham, e acabou de sair lá de dentro do prédio um homem de terno e gravata, olhou-me um longo tempo, o tempo de quem devora, olhei para o chão, depois para o outro lado da rua, cadê o Maurílio?, se ao menos ele estivesse aqui ao meu lado, não, ele ainda está alisando o Galaxie, às oito da manhã, gritando "olha, o motor ainda está quente", e eu ainda estou aqui.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Faces desbotadas

 Chegamos à meia-noite, o show estava a toda, acontecia há quase uma hora. Eu pulava de alegria. Finalmente Meu ego dissolvido na matéria em movimento. Quem disse que o show estava a duzentos por hora foi o cara ao lado. Olhou para meu primo. Gamou. Depois do nada me distribuiu um senhor chute na canela e largou esta: “Não enche, almofadinha”. De trás levei um cuspe na orelha. Grudou nos cabelos. Culpa do Otavinho. Quem é que se chama Otavinho e vem assistir um show do Fausto Fawcett? No meio da fumaça – caos. Música alta. Todos com caras de robôs efêmeros. Tinham avisado para que eu não sair de Realengo, não àquela hora. Ali não era o meu lugar. Zona Sul. Levei outro chute, e este veio quente como um direto de esquerda. Lá quatro caras pulando, agarrados, fumacê, nem olharam para mim. Depois levantaram o dedo médio para o sujeito à frente e depois derrubaram o magrão a pontapés. Um veio e socou a mão no meu traseiro. Otavinho nem aí – um Hamlet contemporâneo, estudante de arquitetura na Federal do Brasil. Me chamava de ninfeta narcótica. O sujeito nasceu em Vassoura, imagina, agora dando as cartas, há poucos anos ele nem conhecia o Rio de Janeiro e os Drops de Istambul. Ficou instalado lá em casa. Como? Aquele atraso na fala. Ele fica perplexo: realidade diluída numa tela de televisão. Eufórico, ao meu lado, ele pulava tanto que se desgarrou. Apanhei o braço, gritei: “Vão embora, Otávio”. Um empurrão. Daí me virei: atrás começaram a se beijar, começaram a se agarrar. A galera ficou excitada com a música alta. Do nada, levei uma bofetada, Desequilibrei, abracei-me no cara da frente. Aí jovem de Copacabana. Só faltou perguntar o que eu sentia, e o que eu sentia era a cabeça girar, então sou Otavinho, o meu primo é o motivo do meu ser ou não ser. Como cheguei aqui? Girei os braços, um girassol sem rumo, e não há ninguém ao meu lado. Vazio, porrada e intensa consciência da minha solidão. O primo sou eu, sim, confirmo que não há ninguém ao meu lado. Alguém grita que tenho as faces desbotadas de Cristiane F. Tudo gira, get out, no palco Fausto Fawcett grita alô polícia!, alguém vem pela diagonal quase me derruba, alô polícia!, eu imaginando que talvez os ventos uivantes sopram todos os amantes na noite de Copacabana, levo outro tapa, tento me endireitar, o passo é torto, o cabelo desarruma, a bolsa some da minha mão, tento fugir mas o homem ao meu lado é forte “o que você está fazendo, menina? Agarra forte meu braço, calma, não vai demorar”, Meu nome é Kátia Flávia, o sujeito ri, e ele é realmente grande, ou eu estou diminuindo, então tudo gira mais rápido, estou no asfalto, dou a última olhada ao redor, são muitos e eles têm muita vontade nos olhos, voam nas pessoas, grudam nas pessoas, a Lua lá em cima gira, o brutamonte está me arrastando para o beco, fizemos amor entre estrelas vigiadas, meu rosto espremido no chão e pergunto: onde as faces desbotadas de Cristina F.? Ao fundo turco camelô grita, turco camelô berra.


Agosto de 2021.