sábado, 29 de setembro de 2007

Os Engarrafados

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA

Todo reconhecimento vem do copo. Frase solta, sentença infame, esta bem poderia ser uma das tantas atribuídas ao mestre da crônica esportiva, Nelson Rodrigues, mas ele nunca escreveu isso. Muita gente atribui frases a ele, acreditando que uma conclusão ignóbil ganhe validade universal assim. Esquecem, os canalhas, que a grande contribuição ao relato esportivo introduzido por Nelson não está nas frases prontas, mas no estranhamento. O sujeito babava o chute perdido. A bola fugiu-lhe dos pés como a última corda de um violino. O goleiro tinha os olhos de um toureiro atingido diante da platéia. São metáforas, imagens que só poderiam tem algum sentido literário se estivem dentro de um texto escrito por Nelson Rodrigues. Quero dizer com tudo isso que a frase acima só ganha sentido se pensamos no jogo de ontem como um exercício de abstração, o nada. Toda partida de futebol amador é inusitada em si mesma, mas não acontece e as melhores revelações sobre o jogo começam no momento do primeiro gole, do primeiro brinde. O jogo é dos engarrafados.
O jogo de ontem. Qual a validade de uma partida de futebol amador se ela não terminar numa mesa de bar? De que adiantaria descrever aqui a partida de futebol que jogamos ontem nos gramadas da Coflob se não houvesse certa dose de estranhamento no relato? Qual o sentido da crônica esportiva que se debruça sobre o futebol da várzea senão o de ver a beleza estética de uma jogada centrada no absurdo? Enfim, não há nada que possa ser dito sobre o jogo de ontem do que a lucidez da análise feita pelos especialistas, na mesa do bar. Los olvidados. Os esquecidos diante do copo. Os engarrafados. A verdade, amigos, é que o jogo é uma abstração, uma pintura, por vezes grotesca, cenário vazio, um filme de Antonioni tamanha a incomunicabilidade em campo. De modo que o relato do goleiro-cronista, protagonista ele mesmo da partida, começa sempre no momento mais sublime: quando o primeiro copo for levantado. O brinde. Jogar futebol com os amigos e depois ter o privilégio do relato, quero crer, é como voar nas cores de um céu de baunilha. Vanilla Sky.
Na noite de ontem, quando tivemos o privilégio de presenciar o ingresso, nos quadros da Coflob, da terceira geração de atletas; no dia em que estiveram em campo os tipos mais variados da natureza humana em busca de algum sentido vago de razão (o prazer de jogar uma bola); no jogo em que pelearam entre si duas equipes desiguais (no trato da bola), vi diante de mim um time inteiro de seres bizarros. Nesse dia, o meu time venceu. Estavam presentes: o goleiro Desmontável (cai em lentas etapas), o lateral Bárbaro (sempre fugindo da zaga para invadir novos territórios), o Turfista de Não-Me-Toque (alguns jogam como se fossem jóqueis), auxiliados, na ponta esquerda, pelo Bailarino-De-Uma-Nota-Só (o homem que dribla a si mesmo), acompanhados no meio de campo pelos dois Bicombustíveis do time (os maratonistas, tal o fôlego), e finalmente, no ataque, o prêmio revelação da noite: a dupla formada pelo centroavante Botijão (o homem da pronta entrega a domicílio) e o ponta-de-lança Apagão (o sujeito não decolou ontem). Um time inteiro a serviço dos acontecimentos mais absurdos. O meu time, contudo, foi comportado e ganhou o jogo. O time adversário – os engarrafados – foi uma tragédia só.
A questão é que no futebol amador o que menos interessa é o resultado. Numa partida jogada dentro do bom senso, em que tornozelos são poupados em nome da perpetuação da espécie e onde nada de tão trágico e jornalístico acontece, sobra ao cronista o relato do inusitado. A revelação surpreendente. O lance fatal que revele algo de surpreendente sobre todos nós, amantes do futebol amador. E como num fado português, o lamento vem depois, quando todos estiverem no local mais importante da partida: na mesa do bar. Sentados ali, os atletas do time adversário buscavam as tradicionais explicações para a sonegação fiscal de seu goleiro (a bola, afinal, entrou, e ele não queria declarar o gol), para o pífio desempenho do Homem de Pelotas, buscavam algo que justificasse a falta de magia de nosso grande ilusionista, Harry P., o pequeno bruxo ontem não jogou nada. Como também não jogaram nada o Assassino da Taís (como ficou conhecido o demolidor da noite), nem o Rapaz com os Cabelos Cor de Baunilha, e muito menos o holandês Cocu. Foram só copos e copos de lamentação, ali, o resto da noite reunidos na grande mesa de nossa camaradagem, um brinde à vida, à nossa vitória, ao retorno do convívio com os amigos do futebol, a razão de ser do futebol amador, o futebol dos engarrafados.
O reconhecimento vem do copo.


Porto Alegre, 29 de setembro de 2007.

sábado, 1 de setembro de 2007

Noite de Estréia

Chegou cedo para a estréia daquele curioso filme. Alguém que encontrou na rua, dias atrás, capote longo, barba escura e uns olhos de procura. Tinha se aproximado de repente, espichou o braço, entregou um pedaço de papel onde estava escrito o dia e a hora da estréia. Queria perguntar mais sobre o estranho filme; o sujeito havia sumido. Agora, diante da bilheteria do cinema, está um tanto assustado com a localização da sala: bairro afastado. Nas proximidades, uma escuridão, poucas pessoas circulando na rua, um deserto uivante. Faz o pedido, apanha o ingresso, sai. Falta muito para o início do filme. Hora de encontrar um lugar fechado.
Do outro lado da rua, iluminado por uma luz fraca, porta entreaberta, um pequeno bar. Decide ir até lá, esperar. Quem sabe dali pode observar o movimento, a venda de ingressos, a chegada dos espectadores. Serão muitos? A pergunta ele se faz enquanto entra no bar e pede uma soda ao dono do estabelecimento. Soda? Há um tom de quem não acredita na voz do gordo atrás do balcão. De pé, nervoso com a espera, ele rodeia os dedos pelo gargalo da garrafa. Pede um copo, já imagina, está sujo. A pouca luz e o silêncio fazem o tempo não passar, essa demora. Se tivesse trazido um livro, revista. Olha ao redor: bar está vazio. Próxima à janela, uma única mesa ocupada; nela a estranha presença de um homem cuja negra barba esconde um olhar pálido, fixo num ponto, como se estivesse sob hipnose sem volta. Com os olhos voltados para a sala de cinema do outro lado da rua, esse homem parece contar as pessoas que estão chegando. Tem os olhos atentos na pequena multidão que vai se formando à medida que se aproxima a hora da estréia.
Lembra o que está esperando. Olha o relógio sujo da parede. O filme vai começar. Num pulo deixa o balcão, em cima uma nota de angústia, o pagamento, sai abandonando o bar e o estranho mundo de perguntas, sombras e mistério que se formou ao redor da figura sinistra sentada naquela mesa.
Da calçada do outro lado da rua, antes de entrar na sala de cinema, volta a cabeça, olha a penumbra do bar. Ele ainda está lá, sentado junto à janela, presença dominante na escuridão daquele estabelecimento sombrio.

O filme começa agitado. Gritos, risos histéricos, a fala macabra, a promessa de uma hora e meia de muito terror. Minutos depois, o protagonista da fita entra em cena. Está vestido à moda antiga, cartola à cabeça, traje escuro e muito escárnio ao falar, esse homem impõe o medo, assusta. Ele olha direto para a câmara com a tranqüilidade dos que sabem serem dono do destino alheio. Um frio na espinha do espectador. A lembrança da cena. A garrafa escapando da mão, rolando pelo balcão, caindo no chão encardido do bar. Grito de horror. O homem sentado no bar vira a cabeça, olha como se desejasse o seu sangue. Aquela interrupção. O homem da tela olha como se desejasse sua alma. Um arrepio: Não pode ser?
Num soco, levanta da poltrona, sai correndo da sala, da rua, do bairro, não olha para trás, só consegue parar quando chega em frente à sua casa. Ao abrir o portão avista do outro lado da rua um homem vestindo um capote, que interrompe sua caminhada, pára, olha em sua direção. Ele está atravessando a rua.