quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Pródromos


Um, dois, três, quatro, foi este, o seu vizinho, lascou o outro, o indicativo, tal a violência que nem posso quero pensar no polegar, deve estar imprestável no meio da lama de sangue que se formou na parede (era um muro?), e depois encontrarem os olhos que enxuguei, a dor, o estrago, a minha mão direita, a cena, os carros buzinando ao meu redor, tudo aquilo que olho agora e me pergunto: fui eu?
Dois minutos antes, mais um telefonema, mas poderia ser qualquer coisa, outra cobrança, a filha da puta da minha irmã, a irritação diante do vermelho, a agora a mão direita que sangra a memória do que escorreu de mim, mais uma porta se fechando, o bate-e-volta, os anos avançando, a certeza, os pródromos, e agora é mais uma porta que deixo para trás, o carro na rua, a freada abrupta, sonora, intempestiva: é aqui.
Desci na violência do telefonema que não se cumpriu, caminhei oito passos e alguns tropeços até a parede, o punho já fechado, a cegueira, o braço rígido, as estruturas elementares da vida amorosa de um lado, protestos ao meu redor, do outro lado a incompreensão, a falta de sentido, o avança-e-recua, a decida, o pêndulo, a decisão: um soco.
Sem aparente explicação, posto-me a olhar para o motorista do carro que parou para me socorrer (será que ele teve essa coragem?), o mesmo que olha a cena imprópria para as dez da manhã, crianças na escola, um sol meridiano... Ele fica parado a me perguntar se está tudo bem, enquanto ao nosso lado, bem próximo, o som do riacho a correr as águas poluídas desta cidade. Olho para ele mas não enxergo ninguém, não enxergo nada além dos poucos centímetros da minha dor desenhada na parede, no muro, um pedaço desta vida mineralizado ali, na mão fraturada, na história que ficou atirada no banco do carro, no telefonema jogado, caído, suspenso, alô, alô, na pressa de uma resolução: alívio.
Disse um não ao homem sem rosto, pouco me importam os congestionamentos, há muito deixei de ouvir buzinas, subi no veículo, fechei a porta, fechei tudo ao meu redor e nem precisei ligar o carro: o mundo estava ligado me esperando.
Acelerei.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Dona Erondina


A moradora do 609, Dona Erondina, não me respondeu ao bom-dia! que lhe lancei, cheio de esclamações e outras falsas simpatias, quando agora a pouco nos encontramos no gargalo do elevador social do edifício. Confesso que fiquei triste quando chegamos ao primeiro piso, a porta do aparelho se abriu, e ela desceu, cega e decidida, resmungando em busca do pão matinal na padaria da esquina. Há meses sua rotina é o meu encanto (ela nem sabe), e no entanto ela nunca me desejou um bom dia. O ser humano... neste caso, a Dona Erondina. É possível que ela também esteja triste, saber... (Quem sabe?) Talvez seja por isso que ela nunca me respondeu – fico com a impressão de que nem tenha ouvido o meu bom-dia mecânico, perdida entre os farelos profundos do dia anterior e uma reflexão aguda, matinal e peremptória sobre a solidão e a tristeza. (Será que Dona Erondina pensa nisso?) Dona Erondina provavelmente não se chama Erondina e nem sequer deve ser Dona de coisa nenhuma, pelo menos segundo o meu catálogo de escolhas. Mas há que dar nomes até às coisas, e a coisa da Dona Erondina já deve andar há anos sem ver uma flor de pessegueiro ou pisar a terra molhada. Se calhar é capaz de haver um motivo para Dona Erondina estar triste. O gato morreu? A televisão pifou? Seu Osvaldo faleceu (provavelmente não se chame Osvaldo, nem tenha morrido, nunca tenha existido). O filho nunca mais ligou? O elevador quase fechou a porta sozinho. Lixo espalhado no chão. O vizinho de andar sempre bate a porta quando sai de casa. Crianças gritam, pulam, infernizam. Ainda não trocaram o zelador? A displicência do Seu Joaquim que fica a conversar pelas escadas com as empregadinhas... Dona Erondina está triste, e não se sabe por quê. Talvez faça tempo que ela não vê morangos silvestres, e tudo em sua vida já esteja mofado. Quem sabe?
Quem sabe também o porquê de estar atrás dela, nesta manhã silenciosa, ruas vazias, passos estreitos, a mão no bolso, o volume, a vontade, a saudade, a sina. A minha.
Está na hora de mudar de bairro.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Homesick


...inspire in me the desire in me to never go home.


Haviam lhe explicado: o descolamento da realidade, a associação incessante de ideias, o balanço pendular de um tema ao outro, a propensão agressiva ao desatino, o desprendimento afetivo e o deslocamento do mundo das coisas (e das pessoas) o levaram àquilo: ao momento em que tudo se desconectaria... O ato, o fato, o último movimento, a intenção peremptória, estalos de uma certeza, agora condução. Reunidas as instâncias de uma memória vaga e já esquecida, tudo é passado, ele passado. No curto-circuito dessa lembrança fria – afogado que levanta o pescoço –, ele está cruzando as portas de ferro de sua nova casa, e a casa bem longe dele.

E por toda vida.