sábado, 30 de janeiro de 2010

Kafka na praia

CRÔNICAS A MEU FILHO


Na praia, leio Kafka. O labirinto do homem contra o próprio homem. Aos meus pés, areia e duas crianças querendo ir para o mar. Querem brincar. É Mateus, meu filho, quem pergunta:
– Quando vamos tomar banho de mar?
Agarro o livro; a leitura me deixa perplexo com os descaminhos do ser humano diante do absurdo das instituições. Kafka é argumentação; e angústia. Suspiro, respondo:
– Quando acabar o capítulo em que estou.
A amiga de meu filho, Giulia, está pulando ao meu lado. Com o olhar clemente e a impaciência dos nove anos, ela para ao lado e inclina-se para o livro que estou lendo. Respira e pergunta:
– E quando vai acabar? Como é o nome desse livro?
O Castelo. Vou acabar a leitura quando eu chegar à última palavra do capítulo.
Ela é rápida, é uma espécie de Frieda à beira-mar, e muito direta ela não perde tempo:
– Fala então qual é a última palavra?
– Porta.
– Diz quando chegar nela?

Nem sempre ler Kafka nos traz sossego – o homem como o intestino do próprio homem; a leitura é um espiral sem fim, areia que sobe e se mistura nas ideias, a escuridão de uma hospedaria dos horrores. Mas isso é Kafka; outro pesadelo.
Dois minutos depois a porta se abre, chegou ao final do capítulo. Kafka vai embora, e nós saímos, os três, rumo à imensidão do mar.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Rápido, ela

Cruzou, cabeça erguida, o canto do olho virado, as ideias um transtorno rítmico de asas e inquietações. No mesmo instante alguém, do outro lado da praça, movia braços e sorrisos, alimentava pombas. Lentas, elas se aproximavam e a medida que os grãos de milhos eram jogados ao chão, ficavam rápidas, rasteiras, aceleradas, a agonia do gemido abafado num desespero de fome. Também ele era um faminto, abraçado a uma fome antiga, o sonho de voar. A mesma fome que o fez vencer a longa quadra, fugir, correr, porque de alguma maneira era preciso afastar-se depressa de tudo aquilo; dela; de seus atos, impropérios, pedidos. O teatro de uma separação anunciada. Mas por que afinal elas sempre pedem mais? Difícil entender as pombas.
Venceu a extensão de uma quadra, virou-se: o conjunto de árvores foi ficando para trás, a praça já era um voo doentio das aves em fuga, porque se não há mais alimento nem promessas – alguém disse ao seu lado – elas fogem.
Endireitou o passo, alinhou-se na certeza: Tenho que me recompor rápido, pra não pensar demais.
Isto foi ele, à luz quente daquele dia seco, sem lágrimas ou apelações.
Isso escreveria ela ao chegar em casa sozinha, e rápida, a caneta bicando a noite, o copo mordendo as lembranças, o papel como único alimento.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Adolescência

Estou no único lugar em que meu amor consegue se expressar. Sei, ela não está aqui, mas quem disse que isso importa? Faz dois minutos que olhei as escarpas do paraíso (ora quem disse que só as garotas sabem poesia?). Foi o tempo necessário para chegar ao santuário, ao retiro, a estas quatro paredes em que recolho minha fé em pequenas folhas e restos de paixão escondida.
Hoje não vai faltar papel.