sexta-feira, 12 de março de 2010

Descanso


Ao som e ao relento das doces pancadas de um pós-almoço, pouco a pouco e com a ajuda da batida peremptória do relógio de parede da sala de jantar, os corpos sentados na varanda vão absorvendo o vago sentir de uma tarde jogada fora entre palmeiras selvagens e folhas amassadas, ao chão, pedra na memória, pensamentos dissidentes, e é neste exato momento que, semilúcidos, suas lembranças descem lenta e caprichosamente pelos caminhos do torpor, do mútuo convencimento de que a vida continua a lhe ser devedora, e que neste instante o mais vital é sentir a suavidade e a cadência de uma digestão feita a goles de café e tragos de cumplicidade, sorvidos sob olhares silenciosos de mãos quase escravas, vindas e idas da cozinha, o cenário em que foram colando ordem ao caos onde ainda antes havia confusão, profundidade, vagas ondas de uma sentido amarelado, feito de frases estéreis e cheias de nódoas e notas de rodapé, ao mesmo tempo em que o suposto compasso intelectual dos presentes era lançado ao espaço em instantâneos postados sob o réguas de frases feitas, nobres, acadêmicas, tão longas e caleidoscópicas como o debate da manhã, elas foram jogadas, uma a uma, como farelos ao pasto das ideias, servidos em mesa de raro desenho senhoril e sedas importadas, o mesmo lugar onde aqueles dois, antes, estiveram presos aos nós do passados, como se estivessem amarrados na confusão de algum desacerto, dívida ou amor, sabendo-se soltos na vaguidão de um enrolado novelo de conversa franca, viva, recheada de ríspidas risadas e finas ironias, de repente confissões e arrebatamentos, ao mesmo tempo quase tão estranhos como o meio ambiente campeiro em que esses nobres senhores da cidade, vestidos em roupas de academia, se encontram, e tudo até aqui era uma nuvem, passagem imperceptível que se descortinava todas as manhãs e que gerava um movimento único em sentido ao debate, este moto-contínuo que tira vida ao silêncio, engasta relacionamentos e afasta a paz relaxante das tardes ao léu na casa grande, no balanço das fumaças, na observação fria e distante dos afazeres de uma fazenda, então estas duas cadeiras postadas na varanda são como dois olhares quadrados para o mundo, mirando o campo ao redor, o infinito das bacias hidrográficas que circundam a propriedade, eles são dois, e o da direita relê incessantemente os seus sórdidos argumentos que tanto irritaram o outro, enquanto o da esquerda busca tranquilidade no ritmo lento e compassado dos sons, no canto escondido dos pássaros, no silêncio da floresta lindeira, mais ao norte, distante, quase uma meta, um destino, uma razão talvez para procurar encanto e beleza na lembrança de uma criança que um dia ele foi, correndo mundo afora, o pai, o seu velho pai sentado naquela mesma cadeira, homem rígido e prático, sempre a negar devaneios e devassas, a ordenar ordens e desmandos, a mãe ao lado, cabeça baixa costurando o peito, e são essas imagens e paisagem que agora se cruzam no mormaço deste descanso, desta tarde que se encerra, e ele fecha os olhos e dorme, enquanto ao seu lado outro rio corre.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Na sala, na rua

Na sala, por um bom tempo...
A poltrona ficou vazia, um emaranhado, uma interrogação.
A terapeuta esperando...
– Cadê o fulano que se diz apetitoso? O que aconteceu?
O vazio acomodou-se.
Agora não quer ir embora.
– O que faço com ele?

(eu sou uma pergunta)

Na rua, ele:
Foi um erro começar a conversa.
Acho que é suficiente dizer isso.
Por um bom tempo.