Almoço na Piedade (Domingo de manhã)
Fome. Um caminhoneiro tem muita fome. Já tive Três dias inteiros viajando
– bolachas, salgados, rebites, refrigerantes quentes, tudo na boleia, sem
parada ou perdão – aí chega uma hora em que é preciso parar, abrir a cozinha e
fazer uma comida decente. Almoço de verdade. Chama-se piedade.
Domingo.
Manhã.
Silêncio ao redor.
Nenhuma viv´alma num raio de quilômetros.
Um caminhão (45 toneladas).
E aquele casal.
Vejo tudo isso de onde estou,
aqui, de trás deste gradil de ferro, portão, passagem sem volta que me separa
do resto do mundo. Dos outros.
Faz tempo.
E tempo é o que mais tenho, agora, recolhido, solitário e impossibilitado
como estou. A única atração por aqui: observar os que chegam, carregados ou
não, os que aproximam, esvaziados ou não, e que tentam inutilmente fugir, por
espasmo ou espanto; os que mesmo assim ainda conseguem ir embora (nem todos têm
a mesma sorte).
Chegaram. O motorista aciona os freios, os gritos que rompem a quietude
do lugar; ele estaciona a carreta ao lado do extenso muro lateral. Descem. E é
com surpresa que noto o enorme contraste entre o encardido dos dois, em roupas
de lugares distantes, em jeans rotos e desbotados, e ao lado o muro branco religioso
e quase puro da Piedade. Descem e vão direto para os baixios do reboque, onde
abrem a grande caixa da qual surgem pratos, panela; fogo, fogão; outro tanto de
esperança.
O almoço, carreteiro.
A fome, a de uma vida inteira.
Apuro o ouvido – e a pouca audição que me resta neste retiro de silêncio
sepulcral ainda me permite escutar.
Ela:
– Lugar esquisito, meu velho, este que tu escolheste para cozinharmos.
Cruz-credo !!
Ele, e há impaciência no maneio de cabeça que faz o velho caminhoneiro:
– Prefiro longe de gente, te falei quantas vezes criatura? Jesus... Maria!
Soy gaucho loco!
Ela a resmungar outros domingos, sempre em casa, espera sem fim; ele
viajando por não se sabe onde, quem sabe: churrascos, parcerias, longas tardes
de vinhos; outros tempos. Agora velhos e sozinhos neste lugar ermo e desendereçado.
E estão. Aqui não tem gente não. Todos se foram, e os que ficaram
perambulam pelas alamedas, dão voltas por esta construção retangular; ou simplesmente
ficam a olhar pelas grades na esperança de serem vistos. Almas errantes. Almas
penadas. Moradores. Do lugar cujo nome está escrito na placa acima – ferro, fria
– portão fechado em que me encontro: