O cirurgião
Tamanha era a potência e o ronco do motor do carro que estacionara
na frente deste pequeno mercado de bairro, que eu nem reparei no
pedido Uma água mineral, por gentileza
feito pelo homem de boa aparência que, perdido, encostara por ali.
Era o cirurgião.
Ainda hoje lembro o erro e também o
quanto eu deveria ter prestado mais atenção nas palavras daquele
homem de voz mansa, de gestos lentos e de cheiro agradável; foi
minha esposa quem o atendeu.
A mesma esposa que semanas depois
ele carregou embora com a promessa de cirurgias e demais melhorias.
Nunca mais ela voltou.
Até ontem.
Sim, porque agora os dois estão de
volta ao lar; estão aqui neste mesmo mercadinho pé-sujo,
como ela mesmo tachou o meu negócio no dia em que foi embora, atrás
que ela foi das promessas do cirurgião plástico. Estão bem
enrolados os dois, juntinhos, acondicionados em partes iguais,
simétricas, fatiados que estão dentro de sacos plásticos de
supermercado – que ironia – lá embaixo, trancados sob grosso
cadeado, mergulhados no gelo eterno do congelador do depósito de
mercadorias.
São belos e perfeitos aqueles
cortes.
Coisa de cirurgião.