Expurgo
Se eu não
tomar cuidado, perderei o costume de estar com outras pessoas.
Sherwood Anderson
In
Winesburg, Ohio
No corredor do hospital, um diálogo entre médico e paciente tem a rapidez
dos insucessos.
– É definitivo, doutor?
– Seis meses de vida.
Estamos em pleno atendimento público, nesses corredores brancos da
ineficiência do serviço público. O paciente lembra alguém esquecido – e ele
olha fixamente para o médico na porta do consultório. Nem pode entrar, e
motivos públicos e privados impediram que o médico desse maiores explicações.
– O que não tem solução, solucionado está; nosso tempo terminou. Era a
voz de termômetro do médico, num gesto de alguém que solta o outro no abismo.
O médico fala, depois roda sobre si mesmo e sai caminhando pelo
quadriculado das paredes encardidas daquela instituição hospitalar; neste
momento o paciente também se vira, e diante dele, do outro lado do corredor, numa
pequena porta, a placa:
EXPURGO
Nada poderia ser mais conveniente nesta hora.
***
Ainda no corredor do hospital, a placa o acorda para outra necessidade
premente, sua, atual: o que é afinal expurgo?
Diante da placa, feito animal, besta, criatura pronta para o abate ele lê
e relê a placa... E neste abandono em que se encontra, o absurdo de pensar
nisso quando você acaba de receber a notícia definitiva, aquele marco, limite,
ponto final.
– Seis meses de vida.
Estamos num hospital. No centro do corredor, o olhar deste homem sobe e
desce, acompanhando a neutralidade das paredes brancas, flutua, então tudo se
fecha ao seu redor, a notícia cria ângulos, afasta perspectivas, e uma voz
suave lhe diz:
– Nosso tempo terminou.
Eis a única notícia a sofrer expurgo de dentro dele, então ele abre a
porta e entra.
***
A placa. O hospital. Cujo nome, Santa Terezinha, lembra a este homem, o
paciente, o expurgo de algum outro abandono.
Tereza. O nome. A esposa do sujeito enjalecado. Também ela tinha dito, e
agora tudo faz o maior sentido:
– É definitivo.
E nada mais.