quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Ponte

CRÔNICAS A MEU FILHO

No centro da sala, o menino está ao piano. É hora do ensaio. Entre a Ponte de Londres e a Canção dos meninos franceses ele desfila seus dedos pelo piano de 120 anos. Nem um pouco intimidado, ele dança sentado num sobe e desce que acompanha as melodias. As teclas são duras para um menino de sete anos, mas também são como a estrada que o guia nas suas primeiras improvisações. Ele inventa entre uma música e outra. De repente ele dá um salto, apanha a pasta da escola e puxa de lá uma partitura nova e inicia a canção dos Pequenos companheiros de jogo. Pode parecer que sim, mas ele não conhece essa partitura e mesmo assim parece um brinquedo. A estrada, antes uma linha reta sem obstáculos e com pequenas ondulações, agora aparece à sua frente cheia de buracos, exige paradas, e ele para; exige suspiros e bufadas, e ele bufa. A irritação dura pouco; ele vence essa etapa, avança um pouco mais, recua, para de novo. Árduo o aprendizado musical, mas parece estar mesmo com os companheiros de jogo, jogando. Até que enfim avança e chega à ponte. Eis o pequeno trecho da música que ele ainda não domina por completo e por isso não consegue passar; mas ele não desiste, é valente, deve estar suando, e daqui, sentado, posso ver como é estreita a passagem, ele consegue atravessar a linha imaginária de teclas – a sequencia que o fará concluir, nesta tarde, essa música.
Ele pula, olha para trás (como se estivesse sentado no carro, a imagem minúscula no espelho), olha e me diz que cruzou a ponte, que ela ficou para trás.
Ganhamos a tarde e mais uma música no repertório.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Curto circuito fechado

Os passos. O movimento. A aproximação. O olhar. A identificação. A conferência. As roupas. A ausência delas. O olhar. A aproximação. O primeiro passo. O limite. O toque. A conferência. A identificação. O prazer. O toque. O avanço. O recuo. O último ponto. O último passo. O olhar. O sentimento. A ausência dele. O vazio. O ato. A insanidade. A loucura. A fuga. A separação. A falta de sentimento. O desprezo. O olhar. O afastamento. A distância. Os passos. A fuga. A constatação. A loucura. O curto circuito.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Danos

Há tempos procurava um trabalho que não danifique o homem. De fábrica em fábrica, passando pelo comércio de peças, o setor de serviços, transportes e telecomunicações, ele caminhou mundos, moveu páginas de classificados, longas caminhadas, feito um trapo, fina camada de osso, ele ali chegou.
Era um ferro-velho.
Com o tempo, apegou-se ao lugar, aos cheiros, às cores, à ausência de cor, à presença de ruídos, o corre-corre de máquinas e implementos, os grandes riscos, a falta de risco, acomodação. Ali ficou. Depois de um tempo, criou intimidade com o proprietário, pediu licença, montou sua casa com restos de sucatas.
Foi muito tempo depois, num final de tarde, quando viu sua imagem refletida no espelho de um velho Jeep abandonado (não havia espelhos no ferro-velho), notou que estava com a cor do lugar, que não havia nada ao fundo, que havia chegado ao fundo do poço.
Ao redor, pó, pedra, confusão.
No rosto, graxa, fuligem, fragmentos perdidos, poucas lembranças, falta de imaginação.
Sem idéias, caminhou em direção à sua acomodação; dormiu a noite inteira. Era preciso amaciar a dor de mais um dia de trabalho.
Naquela noite, dormiu de mais; acordou com a grande máquina de prensar sucatas carregando sua casa. O operador era novo, seu primeiro dia.
Acordou retorcido, depois esmagado. Peça danificada que não deram falta.