Garrafa debaixo do braço
Café, mesa. Acorda. Antes água no
rosto. Desce. Tomar cuidado não cair escadas. São 6 da manhã.
Depois, às 7, levar o filho à escola, ao colégio, ao lugar de
estudar. Trânsito tenso, temperatura mínima. Os primeiros animais.
Soltos. Volta. Banho. Minutos contados. Hoje terá que ir para o
trabalho de lotação. O carro deixou no Centro. A condução, cheia.
O gordo sentado ao lado não tem simpatia nos braços e no perfume.
Solavanco, da lotação, refletem no rebolar da moça de 35. Chega.
Chuva. Corta. Caminhada. Molhado. Saco. Pagar conta atrasada hábito
tornou-se. Gentileza do primeiro porteiro, da moça, das informações,
menos dessa do caixa. Preocupada com o destino da colega. Sem
aliança, ela, nem me olha, nenhuma mensagem capaz de responder a
pergunta: Quer conversar? Sozinho nas ruas repara na garrafa que o
outro, às 8 da manhã, esconde debaixo do braço. Imagina o
alcoolismo tomando conta do seu dia. Ainda não, mais tarde. Antes:
trabalho, colegas, perguntas ignóbeis. Horário. Passagem lenta.
Almoço. Irregular. Na volta, café Emoção: forte, explosivo, convulsão. Daqui pra lá, de lá pra cá. Já são
6 da tarde. Aqui, no Sul, escuro. Convite. Lançamento do livro.
Chega. O autor já está mais-do-que alegre. O outro, o da fila,
atrás, de nome apenas Ben,
lembra trecho de encontros anteriores. Quais? Sabe que há certa
confusão etílica em suas palavras, e é bem possível que o esteja
confundindo com a próxima tarefa: o autógrafo. Simpatia. Pergunta
sobre os projetos, os meus, realmente os escritores são artistas
da fala dissimulada. A mesma que em mim engole no trânsito mais uma
vez (por que fui pegar o carro?), e agora um congestionamento do
tamanho do nosso processo civilizatório gaudério (onde a minha
lança?) me engole por longa hora e meia e à noite, ali me encontro
na sala grande, quieto no meu canto lendo as dez páginas finais
Ithaca Road em
homenagem ao amigo que fez longos circunlóquios e abonou o meu livro
– agora vale mais, agora vale menos – com o seu autógrafo, só
que agora, adiante no dia, a chatice de uma reunião em que
pretendo-me estar e ficar calado. E acontece que a partilhada
leitura, concluída minutos antes do sino e da voz imperial da
presidente da comissão não-sei-qual a nos dizer “Podemos
começar?” e a porrice de velhos discursos deslavados agora
incendeiam a minha paciência (zero) estoura porque a proposta
indecente bate palmas para a iniciativa privada e esquece o coletivo
em tempos estes de ebulição, e então eu já sou de novo o animal
encolerizado que vai acabar a noite em indelicadezas pré-nupciais, e
a seguir no ato-fato contínuo de não deitar-me naqueles lençóis
com a esposa-amada e sim entrega-se à tevê e à última garrafa,
que escondida debaixo do braço vai parar no latão do lixo, quando
cruzo de volta e vejo que já bateu uma da manhã do outro dia. O dia
em que ainda não aconteci.