quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Gavetas

  O aviso era para não entrar. Dizia na porta, em placa cravada pelo tempo. Foi a curiosidade (ou alguma coisa que ele tinha que descobrir sobre o irmão) que fez com que entrasse no quarto, depois abrisse as amplas portas do roupeiro, algumas chaves arrombadas e contrapesos retirados, gavetas vasculhadas, potes, caixas, pó, extravio e lá dentro, no fundo do móvel e gasta pelo tempo, a coleção.
Por que o irmão fizera aquilo?
Primeiro aquela vida. Segredos. Anos e anos fumando. Tosse crônica. Complicações. Doença diagnosticada. Grave. No hospital, um pedacinho, fiapo, fim de vida. A família toda em estado de tensão permanente. Naquele que seria o penúltimo dia de internação, o irmão lhe chamou ao pé da cama, puxou-o com a força dos moribundos:
– Entra lá.
A voz rouca, profunda, água escura, difícil de enxergar, impossível escutá-lo; mesmo assim conseguiu compreender: eram as gavetas. A coleção. O segredo compartilhado.
Os dias curtos. Prognóstico negativo. Sequência de exames, resultados inúteis. Jamais conseguiu retornar ao hospital. Nunca pode dizer ao irmão que entrara lá, que folheara a coleção, a mesma, aquela, que utilizaram juntos, na flor da adolescência, agora bem longe, o tempo se reduzindo, o tempo encerrado, esta linha órfão, confissão, delírio ou memória?


Janeiro de 2018

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Serviço Essencial

     Bons foram os olhos dos cidadãos de Campo Largo quando num certo setembro do ano de 19... intalou-se em seu território a Família Ritos. Vieram ocupar um espaço ma cidade, preencher a falta de um serviço essencial; vieram e ficaram. Eram os melhores da região, e tal reconhecimento veio com o passar dos anos e a passagem por outras localidades pequenas. Os Ritos eram realmente bons no que faziam.
      Por longos e mais outros tantos anos a cidade não precisou se preocupar com seus mortos: estavam em boas mãos e pás. Todos eram gratos ao Ritos pelo serviço essencial que a família prestava ao munícipes; ninguém, contudo, mantinha sério ou longo relacionamento com o clã funerário.  Visitas, festas de aniversário, batismo ou casamento; shows ou paradas; desfiles ou exposições; em nenhuma atividade coletiva ou comunitária da cidade a presença de algum membro da família Ritos se fazia notar.
     Ninguém estranhou, portanto, no dia em que o primogênito, Flóscolo Ritos, anunciou a todos que a famlia já não residia mais por ali.
     - Estão noutra, resumiu sua resposta quando lhe perguntaram pelo paradeiro coletivo.
     Nenhuma notícia tiveram os moradores de Campo Largo até o dia que Flóscolo veio pela segunda vez a público, vinte anos depois, anunciar que não enterraria mais ninguém. E ainda dizer, em fala pausada e com todas as letras escabrosas, que todos já estavam ali com ele, enterrados em casa.
     Desde aquele dia, a pequena Campo Largo nunca mais assistiu a um enterro digno e decente. Nem ao de Flóscolo Ritos.

                                                                                     Janeiro de 2018.