terça-feira, 17 de abril de 2007

Tomás

Claro
Puro
Cheiro

Nascimento
Brilho
Acontecimento – emoção

Tomás,
uma paz que vejo em seus olhos
Dedos e
Coração

Harmonia
Sossego
Energia – e agitação

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Pisca-Fedor

CRÔNICAS PARA MEU FILHO
O colorido no olhar das crianças. A percepção sensorial e mágica dos pequenos – tudo isso encanta a adquirida comodidade férrea dos adultos. Penso nisso enquanto estou aqui sentado, escrevendo, inútil tentativa de dispor da espontaneidade lúdica da primeira infância em benefício próprio. Dez minutos atrás, dirigindo o carro pela grande avenida de nosso bairro e falando o tempo todo com meu filho de cinco anos, eram tais as sensações que brotavam de nossa conversação. O que registro aqui, agora, é soma daquelas emoções. Como um inventário, folha de papel, recuerdo sobre o qual, um dia, ele possa se deitar.

Então, hoje à tarde, quando descíamos a Avenida Wensceslau Escobar e avistamos à nossa frente uma velha Kombi em marcha lenta, numa velocidade claudicante daquelas em que o carro pede marcha, chamou a atenção de meu filho o fato de que a tampa do motor estava aberta. Sua alegria e empolgação traduziram-se em rápidas observações sobre o estado geral de conservação do veículo. Aquela barulheira generalizada. Ele tinha diante de si um “fato”, um acontecimento espetacular diante de seus olhos, e rindo começou:

- Olha ali, pai, o pisca-pisca está ligado e o homem da Kombi está com o braço pra fora.

Expliquei-lhe que o motorista devia estar com problemas no motor, e por isso segurava, ele mesmo, um arame relativamente grosso que, espichado, ia até a porta traseira onde fica o motor. Um provável cabo de acelerador improvisado de última hora. O barulho daquele carro era ensurdecedor.

A velha Kombi ficou para trás; não na imaginação do meu filho. Pois sem delongas foi logo me dizendo que também os caminhões de lixo andam com o pisca-pisca acesso o tempo todo. Comecei a explicação de que... Parei. Lembrei que às vezes os adultos são muito chatos tentando explicar. Deixei-o terminar sua história – e então ele me disse:

- Podiam inventar o pisca-fedor, não é pai? Aí a gente ia saber quando o caminhão estivesse fedendo a lixo.

Ri. As imagens de pessoas correndo do caminhão do lixo com o pisca-fedor ligado, carros desviando do truque, insultos, buzinas, um escândalo sonoro e luminoso aos olhos de um adulto raso de idéias, carente de imagens. Este era eu. Meu filho também ria.

As crianças formam belas imagens em nossas cabeças.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

O Quinto Medicamento

Sabia mesmo só quando acendiam a luz, pois lá vinha ela, passo certeiro, olhar decidido, ela entrava. Chegava carregada com aqueles equipamentos pontudos que traziam dor e dentro da dor líquidos que ocupariam seu corpo nas próximas horas, pelos próximos dias. Ela. A moça que vestia branco, e que trazia consigo sorrisos rápidos de conformação (eles eram fatais para a determinação do seu estado de ânimo). Nessas horas, sempre perguntava para ela se o seu estado, ali, deitado e imóvel, carregado de pensamentos e alucinações, era realmente terminal? Não sabia, e ele nunca soube. Teve muitas perguntas que ele não obteve resposta naquele lugar de lajotas brancas; porque enquanto você está ali, no espaço reservado aos que não podem sair do hospital, as perguntas perdem o sentido, são como nuvens brancas que se dissipam no compressão sólida de paredes duras, lisas, fechadas e estreitas, fria composição assustadora refletida em medidas vindas de aparelhos tantos quantos são os necessários para manter alguém vivo.

Vivo ele está, agora, muitos dias depois, isso ele sabe. Antes, não; antes era uma passagem, um sonho. Delírio, ilusão, pontas de alguma conspiração que ele via nos gestos, nos olhares rápidos e furtivos, atos que ele jamais conseguiria compreender, sedado ali como estava. Numa ordem forçada, rígida. De duas em duas horas alguém aparecia para medicá-lo, e o que mais ele estranhava era a simpatia das moças com agulha na mão. Elas diziam: “Só mais uma, já vai terminar”. Não terminava. “É o último remédio”, não era. Setenta e duas horas no inferno não terminam assim, da noite para o dia, porque naquele lugar o tempo parece criar vida própria: uma hora vale duas, duas valem cinco, cinco uma eternidade. Quebrada, de tanto em tanto, pelo sorriso dos reparadores – os indivíduos que lhe tiravam os sinais vitais. Mas, o que é mais vital do que uma pergunta não respondida? Nos seus sonhos, eles chegavam, eram rápidos e espartanos, jamais riam. Tinham a seriedade dos limpadores e a forma de um medicamento imposto a todo custo, pouco importa a dor do paciente. A dor. Uma forma líquida, quente, viva que invade e queima por dentro, pelas veias, atingindo a circulação interna, o todo. Eram cinco medicamentos para garantir a tranqüilidade forçada.

A cada novo ingresso farmacêutico na sala de recuperação, uma pergunta ficava. A mesma. Como alguém que sonha seguidas vezes a mesma seqüência, aquele homem, instalado como estava no box dos seus cuidados essenciais, apenas perguntava. Mas o sonho se repetia, sim, repetia, como uma frase pobre desprovida de imaginação, carregada de letras repetidas, rimas pobres e ritmo cacofônico. Era o mesmo sonho sempre: e nele, a pergunta se repetia: por que estou tomando este quinto medicamento? Pra que tanto remédio? Digam. Não diziam. Os homens de branco à sua frente nada falavam, como se fossem desprovidos de rosto, de respostas, de nada. Apenas sorriam, e depois partiam. Seriam eles produtos de sua imaginação? Ficava pensando depois que talvez o nome do remédio fosse este mesmo: imagine.

Agora deitado, livre do controle respiratório, do monitoramento constante dos batimentos cardíacos, somados àquela infinidade de fios elétricos a controlar seus passos (mesmo que estivesse o tempo todo deitado, imóvel), este homem procura lembrar. Tenta, apenas tenta, porque o esforço mental ainda lhe custa muito sofrimento (a cabeça dói). Afinal, para que mesmo servia aquele quinto medicamento que os homens de branco sempre lhe aplicavam? Não consegue, faz esforço enorme, tenta, mas não consegue; é em vão. Impossível lembrar. Então ele pensa:

Talvez o quinto medicamento seja mais um desses avanços da Medicina, a lembrá-lo, agora sim, de que ele esteve lá, foi monitorado, controlado, guiado, e que precisou tomar quatro remédios que lhe garantiram uma sobrevida, depois a própria vida; e depois mais um medicamento só para não esquecer de nada. A dor pela qual passou.

Absolutamente nada.

domingo, 1 de abril de 2007

O Homem do Box

Chega ao lugar carregado por duas pessoas, que rápidas empurram o inconsciente do seu destino. Traja neste momento roupas mínimas que lhe puseram horas atrás, em outra sala clara; foi lá que a viu pela última vez e agora ela é a única imagem que gostaria de ter ao seu lado. Vem deitado, o corpo esticado, absoluto, imóvel, ainda passivo e carente de uma pulsação que se considere vida. Seu estado indefinido de vegetal lembra os seres inanimados, as loucuras e desatinos que povoaram muitas de suas histórias, mas tudo que escreveu pouco importa agora, pois sente a necessidade de um toque. Dela. O estímulo próximo que lhe permita continuar pulsando, reanimado que foi, instantes atrás quando em outra sala iluminada mãos peritas lhes retiraram de um caminho sem volta. Agora, ali deitado, ele chega carregado de tubos, agulhas e outras aparelhagem desconhecidas. Seus movimentos são lentos. Este homem está entrando no box.

O movimento ao seu redor tem a velocidade estranha dos incompreendidos, a náusea dos que se consideram desmaiados, alheios à totalidade dos eventos que cercam o seu destino, até ali incerto, agora seguro. Nas mãos condutoras, decididas e firmes das moças que vestem roupas brancas, ele vem sendo trazido em tal rigidez absoluta e necessária que não consegue perceber, mas ele chega. Deixam-no estacionado no pequeno box, o espaço restrito e individualizado onde sua dor e inconsciência serão observados pelo tato dos especialistas, que sintonizados pelos ditames rígidos e peremptórios dos aparelhos monitorados por tubos, cabos, fios e uma infinitude de tecnologias que ele desconhece, acompanharão sua agonia. Dirigem-lhe perguntas, ele não consegue responder. Esse homem está deitado no minúsculo espaço de sua angústia, onde, ainda não sabe, ficará o tempo exato de dois dias.

Minutos depois, a descoberta. Seus olhos, a passos lentos, abrem-se ao desconhecido deste espaço destinado à observação dos que precisam ser observados. Ele olha. Ao seu redor, luzes numa quantidade excessiva. Pensa na crueldade desta simples descoberta: do espaço em que se encontra. Um mundo estreito, restrito, compacto, onde cabem tão somente o seu leito e os tantos aparelhos que monitoram o seu desconforto. Sua sensação de isolamento é completa e não consegue ser amainada pelo toque dos eletros, nem pelos batimentos cardíacos e respiração artificial observáveis. As luzes desse palco trazem-lhe a memória do sofrimento. A solidão é dura porque as máquinas são frias, os bipes sucessivos e os pensamentos intermitentes: tal é o estado de sua confusão mental para entender o que lhe acontece. E pouco interessa que ao seu redor o movimento das equipes e seus auxiliares seja ininterrupto, preciso e determinado; que pelos corredores deste palácio de tecnologia científica escute-se a certeza dos sons que marcam o estado das coisas inanimadas; e que em outras salas outras tantas angústia e indefinições estejam a pesar nos corações daqueles que sabem que não podem sair daquele centro de recuperação; seu estado é grave; estar sob os cuidados daquela sala cheia de aparelhos dá essa certeza nefasta ao homem do box.

E quando noutro dia, em outra hora, bem adiantado na compreensão da melodia triste do seu fado e já desprovido de tantos aparelhos e excessivos cuidados profissionais, quando ela entrar por aquela única porta, o mundo ficará amplo, caberá em passeios, viagens, fotografias em preto e branco de momentos que viveram juntos, noutro tempo, em outro espaço. Sua angústia então se dissipará no instante em que aquela mão finória percorrer a sua como quem toca uma natureza morta na qual sentimos pulsar vida, feita de caminhadas de mãos dadas, assentos, vôos, hotéis, lugares outros que agora, ali, com a sua chegada a mente desse homem vaga, e docemente vive no precário sorriso que se forma em seu rosto.