terça-feira, 29 de maio de 2007

Azeitonas Verdes

Na cozinha, sentado na espaçosa mesa de jantar, tenho diante de mim um pequeno pote onde descansam no líquido da conserva uma porção de azeitonas verdes. Está destampado, a tampa ficou caída ao lado, atirada, testemunho inútil da minha ação. Faz pouco abri o pote que retirei da despensa na esperança de que a memória viva surja dali, de dentro. Deixei-o aberto, à minha frente, como um objeto de adoração emotiva. De lembranças vindas do passado. O vidro. O pai deitado embaixo do vidro que hoje à tarde fechamos, e ao lembrar, choramos. O vidro. Ainda exala o aroma forte de algo recém destampado. O mesmo cheiro salgado do tempo em que viajava de caminhão com o meu pai. Eu e ele. A mãe sempre ficava em casa, muito longe, a quilômetros daquela e de qualquer outra estrada que para mim seria sempre sinônimo de euforia, enquanto que para o pai, trabalho e dinheiro contado. E resignação. Ele nunca me dizia. No silêncio dos quilômetros rodados, eu percebia ele morder a direção, a brigar contra monstros invisíveis.

Viajávamos naquela época para a fronteira com a Argentina. A carga, azeitonas verdes. Eu nem imaginava que existissem outros tipos de azeitonas. Para mim, todas eram verdes. E cheirosas. Carregadas em pesados tonéis, vinham submergidas em água salgada, carga líquida, delicada. De Uruguaiana a São Paulo, eram muitos quilômetros durante os quais a minha inquietação de menino travesso me levava da estrada para o retrovisor, e dali para a simetria da fileira de tonéis lá atrás. Eu cuidava a carga. Noutras vezes eu só olhava a estrada à minha frente, depois girava os olhos pela boléia e dali ia direto para os meus sonhos. Na infância de menino filho de caminhoneiro, eu viajava na minha imaginação contando placas de beira de estrada, morros, curvas, pontes, localidades, postos, sempre de olho na aprovação de meu pai, sentado ao meu lado. Era isso que eu mais gostava de fazer nas férias escolares. Andar pelo mundo acompanhado de sua liberdade. Quando parávamos para almoçar, eu corria a ver os outros os modelos de caminhões, carretas, baús, os pequenos trucks que estacionados ocupavam o deserto dos pontos de parada obrigatória. Às vezes o pai queria conversar e me deixava correr ao redor, visitar o posto, subir na carreta, brincar à beira da carga enfileirada, na carroceria do caminhão. Depois ele ia descansar, não queria ser incomodado por nada desse mundo, e eu ficava quieto, sentado no meio das azeitonas.

Ao final da tarde, quando parávamos, eu pulava fora da cabine para sentir o cheiro de trabalho que corria da estrada e se misturava ao aroma das azeitonas.

Ele me chamava, subia comigo na carreta, mostrava os tonéis, apanhava uma chave apropriada, girava a grande tampa, abria, e então elas surgiam à minha frente, boiando. Aos meus olhos, o poço de bolotas esverdeadas afundadas no líquido embranquecido do tonel era um espetáculo aromático que eu associava à liberdade. Eu queria subir, olhar, meter o dedo lá dentro; ele me puxada, pedia cuidado, era uma carga preciosa. Certa vez me explicou que era recomendação da transportadora abrir alguns barris todos os dias para que as azeitonas pudessem respirar um pouco. Isso acontecia sempre antes de me deixar ali, cuidando das azeitonas verdes. Depois sumia pelo posto afora, voltava mais tarde, acompanhado, fechava as cortinas da cabine leito do caminhão, deixando o mundo lá fora, vinte toneladas de azeitona, o caldo escorrendo, o cheiro empapado da noite chegando, enquanto sentado no meio dos barris, eu ficava observando o entra-e-sai no posto, sempre alguém chegando, alguém partindo.

Agora diante de mim, este pote de azeitonas verdes me faz mergulhar na memória daqueles barris importados trazidos do país vizinho, atravessando o país, transportado pelo meu pai. Depois as horas de descanso em beira de estrada. O mundo correndo lá fora, o menino contando os caroços verdes para o passar o tempo, o dedo metido no tonel, o tempo parava, o pai não saía da cabine, o tempo corria, só parávamos para descansar, o tempo não volta. Se eu pudesse dizer ao pai tudo aquilo que vivemos juntos sem saber.

terça-feira, 22 de maio de 2007

Borracheiro - um dia na vida (fragmento de conto)

A chegada. Poeira revolta no chão subindo no mar da imaginação retida daquele que fica o dia inteiro esperando. Ali, nesta paisagem perdida no meio de uma linha reta que liga esta terra seca ao resto do fim do mundo, um posto de beira de estrada. Ao lado, a pequena borracharia caindo aos pedaços lembra uma hospedaria de fantasmas. Diante do único galpão que compõe o estabelecimento, o borracheiro está encostado na porta principal, amparado pelo conjunto desordenado de pensamentos que neste momento lhe fazem companhia. Súbito, é acordado pelo movimento brusco à sua frente, e é só então que percebe a chegada de um cliente, massa escura e empoeirada que toma conta do seu campo de visão, de sua vontade, revelando o pouco ânimo para mais este dia de trabalho. De lembranças. No balé da poeira desordenada, nada além de muita pressa. Alguns exageram – este nem saiu do carro.

O veículo chegou freando, como se estivesse fugindo da paisagem ao seu redor. Por um breve instante, entre a nuvem de poeira e os pensamentos mínimos do borracheiro, um mundo gira e em seguida pára. Lindomar, este homem de aparência simples que a vida e as circunstâncias fizeram borracheiro, observa indiferente todo esse movimento; seu olhar caminha baixo, rasteja pela terra em direção ao centro daquela provocação. Um pneu furado. Espera o abrir de portas, a manifestação do recém chegado. Ninguém sai do carro. A estrutura metálica permanece diante dele, envolta na escuridão compacta de uma discrição suspeita. Os vidros escuros impedem Lindomar de ver qualquer coisa. Mas depois de algum tempo, o vidro se abre, pequena concessão de uns poucos centímetros de diálogo.

- Arruma esse troço aí, meu chapa.

Lindomar não responde. Fica pensando qual o motivo para as pessoas não descerem do carro quando vêm consertar um pneu. A pergunta ele faz, mas não consegue entender, certos acontecimentos lhe escapam. Pensa em superioridade, certo grau de hierarquia, nobreza, preguiça, ou quem sabe o medo que todos têm de sair do carro, ali, no meio do nada, neste lugar composto unicamente de pó e de pneumáticos. Talvez desprezo, indiferença, um pouco de nojo pela situação, afinal o aspecto ordinário do prédio, o chão encardido e as paredes escuras formam um conjunto compacto e assustador que se estende ao redor borracharia. Muitos clientes costumam deixar os vidros fechados, isolados, sem nenhum tipo de contato.

O borracheiro começa seu trabalho, seus passos são lentos e calculados e se perdem no encardido das lembranças. O trabalho é sujo, rende pouco, mal dá para sobreviver (uma boa parte fica para o aluguel do lugar). Lembra do dono do posto onde tem seu negócio instalado. O pagamento está atrasado, Doutor Epaminondas anda com vontade de expulsá-lo dali. Lembra de seu pai, expulso anos atrás dos campos do Seu Juvenal, fazendeiro e único dono das terras da região. Estas são recordações escuras, encardidas que se misturam ao chão duro da borracharia, a aridez em que não nada nasce, nem semente, nem esperança. Ao olhar para cima, sente a humilhação, ela vem do vidro escuro, fechado. Vem de dentro - ninguém abre.

São muitos, lá dentro. Eles riem, música alta, empolgação. Objetos brilhantes em suas mãos, relógios, pulseiras, colares, canos cintilantes, acredita, sejam armas. Permanecem ali dentro durante todo o tempo que durou o conserto. O borracheiro está agachado, envolto em movimentos que vêm do passado e se misturam, agora, aos fatos da vida, ao trabalho duro, o vai-e-vem na vida de um borracheiro.

Lembranças.

Na saída, o sujeito lhe dirige a pergunta:

- Para que lado fica a fazenda do Coronel Juvenal?

A partida. Arrancam o carro num solavanco, mal esperam o fim da resposta, saem gritando. E quando a poeira enfim baixa, quando todos os fantasmas começam a ir embora, a deixarem-no sozinho, Lindomar fala, quieto para si, que este é só mais um dia na vida.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

A Mulher de 28

Para Ângela, uma amiga
Impossível esquecer o dia do seu aniversário, dois anos atrás, quando nos conhecemos e eu ainda engatinhava na pintura abstrata. Eu era um artista que tinha colorido poucos quadros de natureza morta. Estávamos no apartamento dela, deitados na banheira, afundados no silêncio das horas, eu olhando para ela como uma paisagem. Quando Ana Clara se levantou, a água era uma névoa rosada. Enquanto procurava algo no armário, foi me dizendo:

- O bom de fazer 28 é que só faltam dois anos para eu poder usar um creme anti-rugas de verdade.

Deitado, calculando o tempo que eu tinha, enquanto ela de costas, passava o produto pelo corpo, espalhava como se pintasse uma aquarela. Eu tentando entender o que era “de verdade” no contexto daquilo que ela dizia, ela me olhava pelo espelho, sorria. Melhor pensando, o que era aquele contexto? o que era nós? Ela passando o creme, eu pintando a cena, passo a passo. Era muito pouco tempo, sabia. Recém eu tinha concluído o último painel e aquilo deu um trabalho danado. Como poderia compor uma obra perfeita até lá? Esperei ela se virar novamente, fiz uma expressão de bons negócios e perguntei:

- Quer dizer que não existe nada indicado para as mulheres antes dos 30?

Era uma descoberta. Meus olhos brilharam. Ela acariciava seu cabelo com a toalha e falava sobre todos aqueles produtos que usava, enquanto eu, mergulhado nas águas perfumadas do nosso banho de tarde inteira, ia mexendo com o dedo, desenhando nas cores provisórias, imaginando que eu só tinha mais dois anos para terminar aquilo. O tempo corria. Olhei ao redor: estávamos cercados de produtos de beleza por todas as paredes (já eram muitos àquela época), o banheiro era uma loja de cosméticos, e eu ficava maravilhado com tudo aquilo. Quase mergulhei os ouvidos quando ela começou a falar. Se não tivesse perguntado nada...

Dengosa, sua explicação lembrava uma concha de lamentações, a dor de um perfume derramado. Começou a descrever em detalhes o histórico das rugas na sua família, a árvore genealógica que demonstrava todo aquele despencar precocemente adquirido que tanto a preocupava. Ouvir isso não era difícil (eu sempre tive paciência em ouvi-las). Difícil era encontrar a mulher de 28. Depois toda a preparação, os detalhes, presentes. Encher o apartamento de cremes, prateleiras, painéis. Um trabalho de artista. Ficou de pé o resto daquele final de tarde me explicando, enquanto comigo eu pensava: “Deixa como está, não muda, sua boba, ainda não sabe por que eu comecei a gostar de você?”. Pensei mas não disse, pois a simples menção daquilo poderia fazer tudo acabar antes da hora. Afinal, como falar sobre as imperfeições se um artista não deve se explicar?

Dois anos depois e aqui estou, onde tudo começou. Ana Clara está deitada na banheira, intacta na maciez dos seus 30 anos. De pé, observo. Meus olhos brilham ao ver o que o tempo fez com ela, o tratamento, cosméticos, shampoos, anti-rugas... Afundada na banheira, ela dorme um sono de água parada. “Sonha Ana Clara”, tento dizer, ela não me ouve, fica deitada, sonhando. Um dia Ana Clara me contou que sonhava com cremes. Me disse que buscava a plenitude. Eu tentava lhe convencer de que o mundo é feito de imperfeições, mas ela não me ouvia. Por que ela tinha que acreditar no anti-rugas perfeito? Qual a necessidade se a obra de arte já estava pronta?

Agora está tudo feito. Deixarei tudo pronto para quando os convidados chegarem. Uma obra de arte. Diante de mim, dentro da banheira, os produtos esparramados, diluídos, empapados formam um desenho um tanto disforme e viscoso, de consistência duvidosa e que neste momento dão certo relevo corado às imperfeições do seu corpo – uma pintura abstrata -, e esse colorido rosado disfarça o branco da pele. Como se os cremes estivessem dando vida a ela, mesmo toda enrugada como está. Enrugada, sim, mas quem não ficaria depois de estar morta na banheira há cinco horas?

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Melancia Fora de Época

No supermercado, paro na seção de hortifrutigranjeiros. Um vício ficar olhando aquelas frutas e vegetais que não levarei para casa em hipótese alguma. Ficarei nas bolachas e refrigerantes, salgados e conservas, muita comida congelada, tudo pronto e instantâneo. Para uma pessoa só é mais prático. Passo a chave, saio, dou às costas aos corredores gelados e cinzentos do meu edifício e venho aqui passear. Sempre paro neste setor para dar uma olhada nas cores vivas da natureza – e naqueles seres humanos ali postados tentando fazer de tudo para manterem uma vida saudável. Qual nada! Pura simulação. Uns vêem aqui na seção dos verdes apenas como alguém que presta as últimas homenagens: enquanto acariciam os produtos expostos, querem sair dali o mais rápido possível. Bando de enganadores. Ao meu lado, mais um.

Estaciono meu carrinho de compras ao lado de um sujeito que neste momento olha de maneira demorada e fixa uma lustrosa melancia. Boca aberta, ele está ali feito platéia de circo. Como se tivesse diante de si o show dos elefantes, o embalo do equilibrista, a força atrativa do globo da morte. Patético. Então ele apanha o esférico esverdeado, gira, vira de cima para baixo, olha de novo, procura alguma coisa. Tem nos gestos aquilo que já observei em muitos consumidores: a falsa dúvida dos que tentam se convencer. Estático diante da bola feita de casca e suco, ele retira e recoloca a melancia umas tantas vezes. Seu olhar tem a imbecilidade de alguém que saiu de um dentista há pouco, a boca anestesiada e sem entender a luz ao seu redor. Seus gestos são lentos e desengonçados, como se nunca tivesse visto uma melancia na vida – o brilho de aparecer mais do que os outros. Mas quando percebe a minha presença atrapalha-se, e num movimento um pouco mais brusco deixa cair a enorme fruta no chão. Estatela-se aos seus pés a grande bola verde, agora murcha. Todos ao redor param o tempo suficiente para disfarçar a indiferença dos que testemunham um acidente. Em poucos segundos deixam claro que não estão muito preocupados com o destino da fruta, ou do cliente desastrado; balançam a cabeça, retomam a mecânica de suas compras.

Fico eu ali parado, no meio do silencio de mais uma tragédia cotidiana.

Súbito, reconheço o indivíduo. Um famoso jogador de futebol que recentemente dera ao meu clube um de seus títulos mais importantes. Questionado pela torcida durante meses, o gol na final bastou para absolvê-lo de seu passado recente de improdutividade, e num passe de mágica virou herói. Em poucos meses, contudo, foi do céu ao inferno, julgado e condenado de forma sumária pelo seu péssimo rendimento em campo após a famosa partida final. Acumulou vaias, viveu o exílio do banco de reservas, amargurou o desprezo dos torcedores. Até que foi dispensado pela direção, e pelo que sei, vem treinando separado da equipe à espera de uma proposta de outro time. Virou estorvo de luxo no clube. Ali estava ele. Como em campo, às vezes estático, noutras improdutivo, um vegetal sem serventia. Como os pedaços de melancia espalhados pelo chão, a composição trágica que temos diante de mim, caída, e que agora prende nossa atenção. Sem mexer a cabeça ele me diz:

- Fora de época.

Quase não escuto, me obrigo a perguntar:

- Como disse?

Fala como se estivesse se desculpando:

- Está fora de época. Lá na minha terra estão no ponto agora, suculentas, é só saber cortar, tem um jeito certo. Tem que partir nas linhas nervosas da melancia, depois comer.

Mais um que entende mais de inutilidades do que de futebol. Esses eram os jogadores do meu clube. Preparo a pergunta que está atravessada dentro de mim há quase um ano. É quando reparo um pouco mais em seu rosto: tem o mesmo vermelho picado da melancia, a coloração rude do que já se estragou e não presta mais. Lembra a fruta estrebuchada ali no chão, porção líquida e pastosa, indefinida, inútil, imóvel, uma sujeira das grandes no meio do corredor interditado.

O funcionário do estabelecimento chega rápido, pede licença, está impaciente, vai limpando tudo, varre destroços, seca o caldo vermelho, carrega as sementes esbranquiçadas, anêmicas, algumas ainda ficam espalhadas pelo piso, feito estrela solitária naquele provisório chão colorado.