domingo, 31 de março de 2013

Auditório



Gosto de fazer a esposa do meu melhor amigo rir. Ninguém ri com tanta dança igual ela. Nem as estrelas! Nem as bandeiras de todas as liberdades. Só fica tudo muito chato quando ele está por perto (esse mineiro não é de sorrir), em outros auditórios.
Mas não neste – de luzes, fronhas e cetins; de bebidas a dois e sussurros tais – onde leio para ela trechos de uma certa Verônica:
– Nesta sala só tem objetos utilizados em homicídios.
Ela ri.
Sei.
Também fez isto quando li a histórias dos anões.
Sei:
Ri pelo fato certo e dado incontestável de saber que não se encontra agora em nenhuma espécie de avarandado – e muito provavelmente porque ainda não viu a maleta que deixei embaixo da cama.
Seu riso ecoa, aqui, na audição surda deste espaço fechado, agônico, instantâneo e definitivo, onde copos circulam em corpos fechados que receitam mentes que se dizem abertas: libertas quae sera tamem.
Ela ri de meu Latim, ao mesmo tempo em que se olha mais uma vez no espelho do teto deste nosso palco de garganteios.
Mas gosto quando elas riem; ainda mais quando não percebem o arrastar surdo desta caixa de ferramentas e metais preciosos, finos e afiados, como me será o corte dela.

sábado, 9 de março de 2013

Quinze maneiras de se ver... uma garrafa térmica



  1. O primeiro foi o designer, e ele não pára de virar a peça. O que procura? Alguém aí tem como saber?
  2. O físico lhe tomou das mãos o objeto feito de alumínio e plástico, e virando sobre todos o líquido e as teorias sobre a estática dos fluídos, incrível, foi num zaz esquecido.
  3. Ao lado o químico explicava variações de ph para a moça de olhos piscina.
  4. Para quem o padre não pára de olhar, este mesmo que mistura em pensamentos anáguas e água benta – nada para ele faria qualquer sentido.
  5. Acordados, todos, pelo verbo indignado do advogado que em sua exposição de motivos deixou os presentes atônitos. Um António Vieira das argumentações.
  6. Menos o empresário, olhar seco, duro, fixo, a ver na garrafa grandes possibilidades, faixas de estoques, altos lucros, quantidades.
  7. Quantidade diferente sim da naturalista que pensava na procedência da água e no desperdício das mesmas.
  8. E o ser ecológico, para alguns escatológico, a lembrar em discurso interminável o problema da poluição de nossas reservas nada renováveis.
  9. Enquanto de luta e renovação, de política e favores falou, ao seu lado, o ser até então quieto, matuto, dizendo-se neto de cangaceiro, homem retirante das eternas secas, vindo de um nordeste distante, em nada compreendendo as tradições do sul.
  10. Explicadas pela antropóloga de plantão como sendo um ritual de passagem para o amadurecimento do caráter másculo e endurecido do gaúcho da fronteira, no que em nada foi entendida, esquecida ela mesma em seus olhares de busca constante ao dono da estância.
  11. Assim esquecida, sim, porque num sopro aparece ao seu lado o esteta das formas, o fotógrafo, a ver ângulos e possibilidades no metal prateado da garrafa.
  12. Tal como o cineasta da campanha, aqui a buscar locações para um épico perdido no fim do fundo da América do Sul.
  13. Abruptado aqui e ali pelo historiador que insistia, desde o primeiro minuto, em explicar casas grandes e senzalas numa soma (ele) de preconceitos espalhados por quadras e quadras de campo de uma historiografia conservadora.
  14. Interrompidos, todos, de repente, pelo cozinheiro gordo e engordurado que adentrou o recinto com a chaleira cheia de água quente, pendurada à mão, a pedir num tom campeiro e ríspido: Me passa isso aqui.
  15. É quando entra o gaúcho, e esporreando todo mundo, cambada de intrusos, a dizer: Que que tão fazendo com a minha garrafa?

sexta-feira, 1 de março de 2013

Barriguinha das Aranhas

Os dias todos, aí pelas nove horas da manhã, eu passo em frente à Loja das Aranhas. Leva esse nome porque o dono do lugar é alguém conhecido na área e tem o apelido de Aranha, mas não se trata de ninguém familiarizado com esses bichos – a loja não é uma agroveterinária ou algo do tipo – o negócio ali é outro: naquela esquina vendem-se filmes. Cruzo por ali todo dia, e é comum, mesmo ainda estando fechada a loja a horas tantas, eu me deparar com uma criatura estacada diante da loja, ao lado da porta: é o primeiro cliente. Difícil não reparar nele, afinal é sempre o mesmo sujeito gordo e mal barbeado. Sua barriga tem o formato da bunda de certas aranhas, e não vá ninguém aí pensar que eu sou algum conhecedor das anelosimus eximius. O indivíduo é totalmente anti-social, isto já senti, outra vez que o cumprimentei não recebi nem um resmungo. O que sei mesmo é que ele fica ali paradão um bom tempo, esperando até a loja abrir. Toda vez que passo não deixo de pensar na na ânsia ou na urgência do sujeito em ser atendido.
Isto até ontem.
Ontem eu resolvi frear minha trajetória, esta vida de ente observador e descompromissado das particularidades coletivas desse lado sujo do Centro Histórico, e interrompi a minha ronda por esses recantos ermos da cidade – eu mesmo um caçador de anomalias para os meus relatos iconoclastas – então me postei ao lado do Barriguinha (já podia chamá-lo assim).
Nada falei; nem tampouco ele me olhou (será que dormia escorado?).
Fiquei num pé só, o outro fincado na parede, braços cruzados olhando fixo o outro lado da rua, e quando o primeiro funcionário da loja chegou e ergueu as grades do meu desejo – foi neste dia que virei o cliente número 2 da loja de filmes adultos.
Barriguinha é o número um.
Quem sou eu para retirar o lugar desse biólogo improvisado?