quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Na sala da contabilidade


A lucidez da calculadora é soma das conquistas. O colega do planejamento tinha dito. Lembra disso agora, quando olha o display da máquina de calcular que tem na mão. Antes, contudo, os números iam se alternando, ele imaginando para si a exatidão dos movimentos, a pertinência do abuso e a aparente banalidade da decisão tomada no meio da tarde de trabalho. Exatamente nisso pensava ele, dez minutos atrás, quando aconteceu e toda a conta se foi. Bateu a porta e se foi. Não é fácil trabalhar fazendo contas o dia inteiro. Embaralha as necessidades. A vida fica exata demais, uma equação de possibilidades não-resolvidas, pensamentos, gestos, uma dança de corpos sem a necessária simetria das intenções. Sentados a tarde inteira na sala da contabilidade, os dois buscavam a diferença.

O ambiente é sucinto. Em sua mesa, apesar do emaranhado de planilhas e pastas, o contador tem ao seu dispor a exata definição dos valores. Encontráveis graças à calculadora de última geração, presente do amigo-colega da outra seção, sempre lhe dando lembranças, sendo amável, fazendo comentários ao pé do ouvido. Ao seu lado, ela: a instabilidade. Dois olhos lindos, um lindo movimento de cabelos e formas ocasionalmente em desalinho. O decote é uma conta que se abre lentamente como um verdadeiro patrimônio líquido. A ordem era encontrar os números finais do balanço do mês, abandonar outros parâmetros e suscetibilidades que pudessem surgir trabalhando com ela. De modo que não foi preciso conversarem muito durante toda a tarde – uma pergunta sobre o café, o fechamento, e nada mais. A seriedade da tarefa e a pressão dos prazos impediram as risadas. A tarde foi lenta: um senta-e-levanta seguido de voltas ao redor da mesa, alguns olhares, senta de novo, anota, calcula, respira, não há muito tempo para risadas. Nem respirar nessas horas, ninguém respira – os dois suspiram. Ele aproveita e olha o abismo pela última vez.

A calculadora é seu escape, uma espécie de álibi, o colega tinha ensinado. Se ela virar para o lado, ele fixa na máquina, digita um número qualquer, calcula; e assim a diferença persiste, os cálculos não batem, o trabalho se prolonga. Dentro dele, o ruído prossegue. As palavras do outro são como um roteiro a ser seguido, dito na hora certa, quando anuncia: “Achei!”. Ela abre o sorriso, é a senha; o contador avança. Sente a maciez nos dedos ao percorrer o espaço permitido, a sinuosidade dos dígitos a exigir precisão, nada de incongruências numéricas, sentimentalismos, sabe que tem que encontrar o ponto. O abraço começa firme, se prolonga... O colega do planejamento disse que quando chegasse a hora ela entenderia.

No movimento dos corpos sinuosos e na pressa, o suor corre pelas mãos e se espalha. É um suor que o deixa tenso. Ele pensa na diferença. Naquilo que o colega tinha dito dela, como tudo seria... Na emoção do momento único, nada disso, são os números que lhe vêm à cabeça; e quando inicia abraçá-la de vez com a intenção de comemorarem o fim do dia, ali, na sala da contabilidade, é que percebe a matéria lisa. A soma das conquistas. E sente um desconforto – a pergunta – ela quer saber o que ele está fazendo com a máquina calculadora na mão. Sua resposta mistura somas e conquistas.

Na lucidez do trabalho concluído, apagam as luzes, ela dá tchau e vai embora.

Pensa quando enfim explicará tudo à sua colega.

domingo, 22 de outubro de 2006

Cult

É ter amigos que o tempo não desfaz
Passam anos - loucuras - e nenhum engano
O vento dá a volta, bate na esquina,
Ilumina
Hoje é o dia, toca o telefone
Euforia - que loucura - vem, nos leva e traz

domingo, 15 de outubro de 2006

A Cobrança


Os ouvidos eram duas peças mecânicas a serviço da patroa. A madrugada marejava nos olhos. Noite longa.

Do outro lado do balcão, dedos firmes sobre a fórmica lisa, o rosto da dona do estabelecimento ficava mais rígido, aos poucos iluminado pela luz das oito horas da manhã. Cavado pela madrugada afora, mesmo o rosto de quem dirige o negócio sofre com o excesso de luz dos primeiros raios do dia. O olhar é seco, direto. A ordem tinha um tom que não permite contestação. Ríspida, a voz metálica lhe diz:

- Você é a última que chegou... Vai. Até o início da noite de hoje, quero o dinheiro aqui, nota por nota, nada de cheque; se ela tiver verdinhas em casa melhor.

Foi para casa dormir.

Do outro lado da cidade, a dona de uma mansão está percorrendo os olhos pelos jardins de sua casa, e ali enxerga o silêncio das horas, a solidão. Alguém bate à campainha.

Eram os empregados da fábrica. Trazem o corpo do marido, tão caído parece morto. Chegou quente: o sol lá fora e o esforço coletivo em arrastá-lo deixaram a massa corporal aquecida, como se tivesse saído de uma sala fechada há pouco. Camisa aberta florida em detalhes cafonas, o rosto ainda vermelho, as calças amarrotadas em desalinho e os sapatos levemente fora do pé formavam um quadro de brisa, um leve sopro, descontração que contrastava com o odor forte de 12 anos típico do Tennessee - seu bafo inebriava a casa. Foi deixado no quarto do casal. Ali ficou, no seu estado líquido, roncando, mergulhado na cama. Quatro noites fora de casa. Agora ali, deitado, roncando, atirado, indefeso. Ficará na mesma posição até o final da tarde, quando então a esposa entrará no quarto silenciosamente em busca das notas. Será necessário, para que o pagamento possa ser realizado. A dificuldade, contudo, estará no cofre, que fica do outro lado da cama, e será preciso muita técnica para contornar as pernas atiradas do marido e o forte hálito que sufoca o quarto. Tudo isso no escuro – claro – pois quando entrar no quarto novamente serão cinco horas da tarde, é importante não acordá-lo. Não àquela hora. Só depois. Para contar do pagamento. Explicar. Por que precisa explicar se o marido não lhe dá nenhuma satisfação?

A garota dos ouvidos mecânicos chega, bate no portão, chama a moradora da casa, mas é a vizinhança que espia, espreita, quer saber quem é no fim das contas aquela moça que bate à porta dos Marques Rabello – e vestida naqueles trajes, cabelo, pintura, como se estivesse pronta.... Pronta para algo, na certa um encontro, mais tarde – a dama do Camafeu – e quando o dia se fizer noite e a madrugada entrar dia afora, ela entregará tudo que ganhou à dona. Agora, ali, no meio da tarde, veio em busca do pagamento. A briga e o estrago da noite passada custaram caro ao marido.

A Senhora Marques Rabello flutua pelo quarto, busca a chave (o marido só confia a ela o dinheiro), abre o cofre, retira de lá a quantidade exata do delírio. Busca forças para compreender. Até quando o marido fará aquilo? Fecha, dá a volta, tranca. Quantas ainda serão as noites que terá que passar em claro esperando sua volta? Quinhentos dólares. E depois saber pelos empregado que o patrão ficou por lá.... Com as notas contadas na mão, caminha lentamente até a sala. A moça do camafeu de pernas cruzadas, insinuante. Chega como quem busca respostas, mas sabe, não pode perguntar. Faz parte do pacto que fez com a dona do estabelecimento. Estende a mão – a outra agradece.

A voz é rouca, o olhar lhe devora. Sabe, conhece. Um dia ela também precisou muito olhar seus clientes de uma maneira sutil e ao mesmo tempo mercantilista. Por isso estende uma nota a mais, que explica, ficará para a outra.

domingo, 8 de outubro de 2006

O Sonho do Pequeno Goleiro

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA


Temo que escrever é exercer o limite das coisas. Penso isso enquanto imagino que a grande contribuição da crônica está justamente no lugar onde ela pode ser mais definitiva, tanto para quem lê como para quem escreve: captar o que acontece vivendo-se cada coisa. Todo texto é assim – lição que aprendi mergulhando nos textos de Clarice Lispector. Mas como transportar toda essa sensibilidade – registrar em palavras as impressões de um acontecimento vivido emocionalmente – sem perder-se na irrelevância do relato? Dúvida cruel. Da qual pode surgir, em forma de texto, todas as possibilidades do cronista. Esse é, contudo, um trabalho de carpintaria. Um neutro artesanato de vida. O bom texto é aquele que capta o instante-já, o agora-agora, no qual o registro do vivido pelo autor seria melhor se sua sensibilidade conseguir percorrer os caminhos que se escondem “atrás do pensamento”, e tal como no poema em prosa de “Água Viva”, atingir a diluição humana. O demasiado humano. A matéria do sonho.

Imagino essas coisas quando lembro os fatos de ontem. Nosso jogo semanal realizado em plena tarde, quando a leveza de um futebol moleque às 4 horas de um dia compassado de primavera foi vivido no calor de uma partida bem jogada, enquanto lá fora a brisa animava nossos sonhos noturnos.... Sim, um jogo em que todas as peças estavam funcionalmente perfeitas, bem postas em campo, como se tivéssemos combinado tudo antecipadamente, e foi assim que o jogo fluiu. Bonito jogar com vontade, jogo disputado, na lealdade, e como sempre acontece em nossas partidas, sempre surgem aqui e ali pequenas obras-prima de estranheza – o bizarro de alguns gols acidentais e jogadas inusitadas.

Meu jogo, contudo, foi outro. Eu sempre me transporto das quatro linhas do campo e fico sonhando. Chego para jogar e logo em seguida vejo que já estou flutuando numa atmosfera etérea, imaginando que naquele dia eu não tomarei nenhum gol, que jogarei uma bela partida de futebol, não decepcionarei meus companheiros de equipe, etc. Os gols sempre acontecem, mas têm vezes que eu jogo bem. Ontem foi assim. Talvez tudo fosse por causa daquilo. Do fato ocorrido. Porque quando cheguei ao ginásio, um menino bem pobre batia bola com meus amigos. Estava no gol. Logo vi que ele é daqueles que gosta de defender – no sangue de todo goleiro há um componente suicidada que ele despeja no empapado da grama cada vez que se joga com determinação na bola – e ali estava o menino voando. Esforçado. Jogando-se em todas as bolas como um artista da fome em busca de reconhecimento. Impressionando tanto a todos (creio) que acabou sendo convidado para jogar um trecho.

Mas quando ali cheguei, logo que o vi batendo bola, a primeira coisa que perguntei a ele era se não queria uma das minhas luvas emprestadas. Tímido, me disse que já tinha uma. Olhei suas mãos: eram luvas de lã. Então fui até minha sacola e de lá apanhei o par de luvas que eu estava abandonando, porque naquele dia estrearia um par novo. Entreguei as luvas para o garoto. Disse-lhe que tinham sido de um grande goleiro. Juro que não tentei ser irônico, tampouco fui fidedigno aos fatos (as luvas tinham sido minhas e eu não sou um grande goleiro). E fiquei imaginando o que estaria passando naquele momento por trás do seu pensamento – a água viva em que vivemos diluídos, soltos, sonhando. O menino era pura alegria, saiu saltitando. Também eu fiquei contente e me empenhei em mostrar que eu poderia jogar bem (“...de um grande goleiro”). Um pouco ainda ficou conosco, jogando no outro time; depois, quando nosso time se completou, ele se parou deitado ao lado da goleira oposta. Arranchado, parecia dormir, tranqüilo, alheio à movimentação em quadra: chuteiras e chutes violentos. Sonharia? Calculei que estivesse sonhando, ali deitado, as luvas postas nas mãos (ele não as tirou), imaginando-se em grandes defesas, ser ele também um Dida, um Gomes, um grande goleiro.

Foi “acordado” quando um chute forte e rasante o atingiu frontalmente. Voou boné e não sei mais o quê. Levou um susto, creio, e meio que se levantou. Teria sido uma defesa? Deve ter se perguntado. Deitou de novo, ficou até o fim do jogo.

Na saída perguntei o seu nome: Mateus. Tinha o mesmo nome do meu filho, o garoto alto que tenho lá em casa, a quem tento persuadir a ser goleiro, mas que já me disse que não vai atacar no gol.

Porto Alegre, 8 de outubro de 2006.

quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Bilhete


As palavras têm um gosto doce:

- Bom dia!

Ela sempre consegue dar a mesma intensidade ao cumprimento cordial da manhã. Um bom dia sonoro. Cheio de exclamações.... flores, jardim florido. Há doçura nas suas palavras, no seu jeito; sua pessoa é assim, e por isso contagia os colegas. Quer dizer, quase todos. Pelo menos é isso que fica pensando depois que ele entra na sala, passo firme, duro, olhar fixo em algum ponto obscuro que ela desconhece. Mas quem é a pessoa ali, na empresa, que o “conhece” verdadeiramente? Ninguém. Por isso, todos o toleram, relevam o seu jeito. E ela segue no trabalho, abandonada, afundando na cadeira, feito um barco em dia de naufrágio. No dia de afogamento. Sente-se sufocada, imobilizada, olhando-o chegar, ali sentada. Porque hoje ele entrou de novo com aquele olhar, e ninguém conhece “aquele olhar”. Ninguém conhece nada dele. Só as instabilidades, soltas, avulsas, perdidas. A sala parece um oceano de instabilidades. O silêncio cadencia os poucos movimentos.

Ele entra. Atravessa a sala como quem caminha irrompendo o Mar Vermelho, mas a imagem não é bíblica – é antes a fotografia de alguém que está distante, rosto estático, olhar parado, profético, muito longe dali. E quando vence os poucos metros que separam sua mesa do hall de entrada, ele chega lentamente, e como um banhista que assoma à praia, senta e não responde ao expedito cumprimento da colega, ela, ensolarada como a linda manhã de primavera lá fora.

No silêncio de quinze minutos que se segue, ainda sentada, ela ficará pensando como é difícil entender aquela criatura em suas oscilações (o mar revolto), e talvez, como os outros colegas, releve aquilo tudo porque deve existir algo de maravilhoso naquele ser humano que parece, mais uma vez, ter entrando em ruínas naquela sala. Trancado por dentro. Acorrentado. Um afogado – a imagem é de um afogado. Mas como alguém pode estar pedindo ajuda em dia tão esplêndido aos olhos de qualquer um que tenha vindo da rua, principalmente se você viu, viveu o dia lá fora. O silêncio dura exatos quinze minutos.

O tempo necessário para que ele, pela enésima vez naquela manhã, repensar todo seu comportamento, sua vida, os acontecimentos desagradáveis com os amigos na noite anterior, enfim, sua indiferença diante das adversidades, sua impaciência diante do humano (demasiado humano), a vontade de terminar tudo muito rápido; e ali, quando já estiver sentado em sua mesa, silencioso, sinta-se como alguém à deriva, uma pessoa que pelo seu comportamento só consegue deixar os outros soltos, sem referência, náufragos sem um porto seguro ou tábua de salvação; perdidos todos nas difusas cavernas espanejadas nos abismos das algas que ele cria – aquela peneiração salitrada do mar que tanto nos dá sede - e oprime.

Após esse tempo, ele levanta, caminha, assoma o fundo do mar, mergulha. Vence as três mesas que separam ambos (ele e a colega estão sozinhos na grande sala) e nadando como se estivesse a vencer o dorso de uma onda que quebra, ele pára atrás dela, respiração cansada, quer entregar algo. Precisa do gesto e traz na mão um pequeno papel – o bilhete de um afogado – onde está escrito seu pedido de socorro, deixado sobre a mesa de sua colega de trabalho, dizendo apenas:

“Bom dia.”

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Guria

Você é uma guria que dá muita força para mim.
Entra pelos confins
Percorre desertos, lama e quebra muita porcelana
Sempre chega ao fim

Tua força?
Uma humanidade carregada de flores e espinhos
Que coloco sobre a cabeça
E tal como Lázaro
Ora luz
Ora chaga
Essas camadas de dor e delírio
Me trazem flor, me trazem espinho

Minha literatura já existe, mas ainda está na sua forma mais elementar, rude e bacteriana: o vômito
(ninguém quer o vômito, certo?)
Estou longe do ideal...
Sei
Sabemos
Preciso precisar de outras coisas mais e muito dessas coisas outras mais:
Estilo, concisão, incidência
E para lhe dizer, bem mais indecência
Enfim...controlar minha dor
Demência
Transformar tudo isso em
Luz, força e delírio

Ou outra coisa que me dê garantia