quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Banho Tcheco

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA
O costume insano de escrever sobre os campeonatos profissionais e suas mirabolantes histórias ganha força, aqui, neste espaço, principalmente numa semana como esta, quando sabemos de antemão que o nosso futebol amador não vai acontecer porque foi cancelado. Então eu faço como a crônica esportiva especializada e fico babando à procura de algum evento que dê razão ao jogo. Creio que não faltará assunto nos jornais de hoje, afinal pelo menos dois grandes acontecimentos preencheram a noite de ontem quanto Grêmio e Cúcuta entraram em campo pela Taça Libertadores da América: faltou luz e o time gaúcho não jogou bem. Dois eventos sinistros que serão noticiados quase como um belo conto de terror, quem sabe não aparece alguém aí e relata o jogo como aquela instigante narrativa de Edgar Allan Poe, “O Enterramento Prematuro”. Prefiro falar do banho.

A partida de ontem. O apagão. A noite em que definitivamente faltou alguma coisa acontecer em campo para os meus amigos gremistas voltarem para casa contentes. Digo uma, mas faltaram várias. Muitas. Um time inteiro que não funcionou, e eu arrisco dizer que as únicas peças que se comportam bem na equipe tricolor foram os argentinos: o rolo-compressor Schiavi e o preciso goleiro Saja. Foi, contudo, pouco. Faltou futebol. Menos mal que não faltará assunto para a crônica esportiva, esses tinhosos que escrevem todos os dias e chegam com aquela conversa mansa, explicando táticas, avaliando desempenhos, situações, substituições, se isto, se aquilo, etc. Tudo isso – devo acrescentar – a crônica especializada sabe fazer com maestria: explicar. Aliás, se você abrir as páginas esportivas verá que elas estão impressas e cheias de explicações para o insucesso do time do Grêmio em casa. Uma equipe que até então contava com 100% de aproveitamento na Libertadores – e agora esse resultado vem nos assustar. Como se vivêssemos num mundo irreal e só quiséssemos a pílula azul. Por isso, hoje, a “Matrix” precisa nos explicar direitinho o que afinal aconteceu; mas não aconteceu nada. Só faltou luz. E futebol. Minha teoria é de que por causa da falta de luz, faltou futebol.

Confiando exclusivamente no futebol de seus dois iluminados – Lucas e Tcheco – o time gremista afundou na escuridão de um mundo feito de sombras. Misteriosa e instigantemente inexplicável, a equipe da lomba dos cemitérios lembrava o roteiro sinistro e inquietante do filme “De olhos bem fechados”, porque, amigos, é como se todos estivessem jogando vendados – nenhum passe chegava no companheiro de equipe. Ao contrário dos jogadores do Cúcuta, estes sim tocaram a bola como quem rege uma orquestra; mas também não ganharam a partida, porque sabemos que se tem uma coisa que os colombianos sabem fazer é tocar, tocar a bola... O time da Colômbia me lembrou outro filme: “Peça inacabada para piano mecânico”. Toque eles tinham; gol que é bom, não.

Para mim, o grande apagão do time gremista foi Tcheco. O motorzinho não funcionou, e isso me fez pensar que se o time tricolor depende tanto do jogador Tcheco como dizem (porque eu não sei), desse modo, a maneira mais fácil de ganhar do Grêmio é apagar o Tcheco em campo (ontem ele se apagou sozinho). Ou melhor: desligar as luzes do estádio. Secar o jogo. Afinal, sem luz, não tem água quente, e o banho é na base da ducha fria. O que, aliás, deve ter feito cada um dos torcedores presentes ao Estádio Olímpico ao final da noite: ao chegaram em casa, tomaram um banho gelado para esquecer o calor da indignação.
De modo que a tarefa que eu tinha ontem à noite, adiada como foi por uma hora, no fim, deu resultado. Secar o time do Grêmio pela televisão, na noite de ontem, no meio do inferno que é a umidade do verão em Porto Alegre, foi algo cruel e desumano. Um incômodo. Exatamente como a falta de luz no início do jogo, aquele frio na barriga dos torcedores, de repente estamos em casa, já é inverno, tudo gelado, não tem luz, o que vai acontecer? E o banho, como é que fica? Vai ter que ser banho de gato, localizado, um autêntico banho tcheco.
Porto Alegre, 28 de fevereiro de 2007.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

O Encontro

Nesta tarde cinza, Ana tem um compromisso. Fica na Rua dos Cemitérios. Lomba sem fim, ladeira da memória, depósito, enfim. Como se aos mortos não fosse dado nenhum outro direito a não ser um lugar distante e sombrio – e o único privilégio de não precisar morrer de novo. Ana desce entre pedras, tropeços e lembranças. Ela tem um encontro

Caminha apressada. Ouve seus passos na calçada, como se alguém a seguisse pela lateral do muro branco que separa aquele mundo de recordações. Resolução que tomou no início da tarde: uma visita, um ano depois. No caminho pára, lembra que precisa comprar flores. Seus pensamentos vagam pela insensatez daquele encontro. O traste.

De longe avista o portão da entrada, a administração do lugar, onde dá o nome do esquecido e pede a localização. Abandona-se mentalmente no rumo sugerido pelo mapa mental elaborado pelo senhor que tem no rosto vincos que lembram uma cova e que parece morto, sem cor. O homem indica a rua, alameda norte, terceira fileira à esquerda, jazida 38. Fácil, Ana diz para si, como se a morte fosse fácil, definitiva. Segue ao encontro do lugar. Seu coração bata, vacila, ela pára. Pensa em desistir, está perto, continua. Ao chegar ao túmulo do marido, estranha aquela presença inesperada, em traje de um preto profundo e severo a demonstrar o luto. A pessoa está depositando flores sobre a lápide.

Aproxima-se. A doce flagrância dela confunde-se com o perfume das flores deixadas ao léu. Reconhece o perfume – o mesmo que um dia encontrou embrulhado como um presente nas coisas do falecido, agrado sem dono deixado pela morte prematura.

A mulher que estava parada diante do túmulo de Carlos, o marido, sente sua presença; vira-se. Por um instante tem os olhos fixos no par de alianças que Ana usa na mão esquerda. Tem o olhar perturbado, estático, perdido no deserto incerto de uma dúvida que não consegue segurar:

- Esposa? Não sabia que ele era casado...

Aquela pergunta sem resposta corta o silêncio frio do lugar, atinge Ana, uma agonia sem fim, como o grito de um pássaro que se ouve adiante, ecoa, sozinho.

As duas paradas, elas apenas se olham.

Um gosto de lírio murcho na boca. Ana esmaga o ramalhete que traz preso às mãos. Dá alguns passos, aperta ainda mais as flores, e então olha para o firmamento: um céu pesado, cor de chumbo. Olha como se buscasse fôlego para dizer:

- Devo ter errado de túmulo... este cemitério... enorme.

Recua. Os passos de Ana são lentos, indecisos, dobra a alameda, a seguir outra, vontade de correr pelo mundo, mas ela pára, respira, olha de novo para o horizonte: malhas cinzentas em fundo vítreo, enquanto aqui embaixo seus olhos estão secos, duros, feito pedra depositada no chão.

Um aperto. Tudo quieto e frio. A brisa lenta traz o cheiro das flores. O revoar de um pássaro lembra Nosferatu. Deitado diante da outra, esse demônio íncubo lhe tira o sono. Desespero que lhe abate, trazendo à memória de Ana os gritos do marido, uma rocha dura negando até o fim. A crueldade de pensá-lo na imagem do verme em que se transformou, ali, adiante, deitado.

Parada em frente a um túmulo simples, anônimo, desprovido de qualquer tipo de adorno ou inscrição, Ana deposita as flores amarrotadas, natureza morta, desmaiada e incerta, como suas mãos e seus pensamentos neste momento.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Psicologia


Estava na hora de ligar para Mônica, saber se ela estava disponível naquele dia; me disse que ainda tinha horário vago para consulta, mas não gostou do telefonema em cima da hora. Explicou-me que não gostava de receber clientes tão tarde, eram regras, todo profissional deve ter regras, estava abrindo uma exceção. Cliente antigo tem seus privilégios.

Mônica é a cara da Psicologia. Enigmática. Silenciosa. Manhosa em suas formas e perguntas. Meus familiares não aprovariam suas técnicas, chamá-la de terapeuta e nossa conversa de tratamento seria demais para eles. Mas eles não conversam comigo há anos. Mônica. Ligo e não pronuncio seu nome, só "doutora, doutora"; ela não gosta, me disse isto outro dia. Prefere que eu evoque o seu lindo (e sonoro) nome de batismo; dispensa em absoluto os títulos que a ciência lhe concedeu após anos e anos de estudo, ainda que, segundo ela, tudo fora em vão. Na informalidade do tipo de tratamento proposto por ela – sua técnica de análise – , o ser humano pode ser explicado em seu funcionamento terreno, atos e falas, nada de culpa ou castigo. Para mim, a Psicologia de Mônica sempre ajudou; fico aliviado quando juntos fechamos o palco de seu consultório improvisado.

Chego em busca do meu anjo da guarda, ela está ali parada no mesmo lugar de sempre feito uma imagem. Nas curtas palavras em que ensaiamos nosso encontro, vejo em seu rosto a calma de quem sabe o que faz, que pode demorar mas o paciente sempre volta. Dali partimos para a luz que nos espera, onde poderei encontrar um pouco de paz, de aconchego, de carinho e conforto; às vezes quase durmo nas sessões tamanho o relaxamento da prosa de Mônica. Entramos juntos, o espaço é amplo e pouco ornado. Sento na poltrona do canto, espero que ela faça tudo que precisa, vai me deixar esperando um pouco, depois puxar conversa, perguntar o que está me deixando aflito esta semana; Mônica sempre pergunta muito. Tem dias em que me sento e só eu falo, ela me ouve, não mexo nenhum músculo, ela fica estática, e do alto ouve o meu canto improvável. Minhas dúvidas são existenciais, Mônica sabe, não me diz mas sabe que são de difícil reparação. Sinto que há sinceridade na sua fala, vejo pelo sorriso a brotar naquela superfície macia, seu rosto refletido no espelho lateral, enquanto vou desenhando nesse mosaico um olhar de sofredor; depois tudo se transforma em riso, deboche, gargalhada, e ficamos assim, um longo tempo um olhando para o outro... Sempre queimo a hora por causa disso, minha terapeuta diz que isso não é muito profissional de nossa parte; ela não entende porque faço isso, não admite que uma pessoa pague tanto para não chegar a lugar nenhum. Me diz que é insensato ficar como ficamos, prostrados, falando, depois rindo, daí levanto, estou pronto, posso ir embora... Ali dentro tudo é luz.

Antes de sair, pago; é o nosso acordo. Faço isso e volto a cabeça para me deitar mais uns minutos. Relaxar. Lembrar a importância das coisas deixadas numa cadeira ou cabide. O mundo que ficou lá fora, onde ninguém me ouve ou atende. Olho para o alto, e as luzes são o testemunho de tudo que aconteceu aqui. Acenam para mim, acesas, brilhantes, um brilho de cores cintilantes refletidas no conjunto de espelhos no qual o meu mundo gira por alguns instantes. Mônica desmancha minhas ilusões ao apanhar o dinheiro e me dizer, ainda deitada, que vai usá-lo para pagar uma conta, talvez viaje para a praia no feriado, a vida continua, semana que vem tem mais. Diz isso e enquanto se vira de lado para recebe os últimos sinais da brisa que vem do aparelho de ar-condicionado, sinuosidade artificial que resfria nossos corpos, duplicados como estão, lá no alto, onde o grande espelho da alma revelara, uma hora atrás, os movimentos de carinho e compreensão de Mônica.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

As Duas Gôndolas

CRÔNICA ESPORTIVA DA SEMANA
O jogo é um meio de transporte. Entenda o leitor da maneira que quiser, esta frase traz em si todas as significações pertinentes ao mundo do futebol. Tomada na sua literalidade, ou compreendida como uma metáfora, toda partida de futebol é uma forma de transporte. Nunca vi a crônica esportiva tradicional analisar uma disputa futebolística dessa maneira, mas enfim, tudo sempre tem a primeira vez. O jogo é uma forma de superação do momento. Analisado em seu aspecto mais dinâmico, interativo e mercantil, ele é uma forma de carregar emoções, transportar corações, despachar sentimentos. Na sua dinâmica interna, ali, suado, jogado, disputado, o jogo de futebol pode ser visto como um transporte: quando entram em um campo de várzea para jogar futebol, os jogadores saem em busca da bola e da realização: todos querem ser transportados para a glória do belo gol feito, da jogada de esteta ou da defesa extraordinária. Poucos conseguem unir tudo isso ao mesmo tempo. Falo dos goleiros.

O jogo de ontem. Como posso comentar o jogo de ontem se durante um bom trecho da partida os jogadores se movimentaram na cancha como ferro carril, disputando bolas como uma locomotiva, desmontando defesas como um cargueiro ou conduzindo a pelota de pé em pé como se estivessem dirigindo numa auto-estrada. Sim, amigos, uma partida de futebol pode ser interpretada sob vários ângulos; no jogo de ontem, fiquei com a impressão de que todos buscavam a beleza do tele transporte, traduzido naquela jogada que partindo dos pés do zagueiro encontra o meio-de-campo livre e este, numa tabela rápida, invade a área, dois três toques, é gol. Lindo de ver como uma partida pode ser entendida como um sistema de transporte em pleno funcionamento. Da carga ao destino, quatro passes e um bonito gol. No jogo realizado ontem nos campos da Confraria Futebolístico-Literária Olavo Bilac – Coflob, isso aconteceu. Uma. Duas. Várias vezes. Todos buscavam a beleza de um passeio de gôndola, e tal como o personagem criado por Thomas Mann “Morte em Veneza”, o solitário, obcecado e atormentado escritor alemão, todos em campo ontem buscavam encontrar O Belo. A jogada triunfal.

Antes que isso acontecesse – o jogo foi bonito de ser visto –, a partida teve suas aberrações e instabilidades. Sempre tem. O leitor dessas crônicas já sabe que em determinado momento do texto eu abandonarei a infrutífera tentativa de criticar a crônica esportiva convencional, que a certa altura da narração deixarei de lado os fatos concretos do jogo (a disputa em si) para me concentrar no grotesco e fantasmagórico – no show de horrores. E qualquer um que vive o mundo do futebol amador sabe: o insano está presente, a cada duas, três, no máximo quatro seqüências de jogadas, e lá aparece ele. O inusitado. O impensável. O inexplicável. A falta de sentido no transporte, sensação de entusiasmo e de arrebatamento que toma conta de alguns. Como nossos dois goleiros, os gondoleiros, a nos transportar em direção ao trágico. Os dois atletas que ontem, vestindo a camisa número um de seus times, protagonizaram cenas de rara beleza plástica em belas defesas de bom alinhamento, aprumo e precisão; mas que no início da partida, ali, no momento em que nossas gôndolas partiam (o início do jogo) para um passeio nas águas escuras de uma Veneza sombria, descrita com fascínio e terror por outro escritor, Edgar Allan Poe, nossos goleiros, cada um à sua maneira, abandonaram o sentido refinado do jogo e entregaram os dois primeiros gols. No primeiro deles, um chute na trave rebate e volta, depois bate nas costas do goleiro e entra; no segundo, uma lambança coletiva que parte das mãos do arqueiro do time adversário, a soltar a bola nos pés dos atacantes adversário como se perdesse o remo em mar calmo. Duas instabilidades.

Duas jogadas em que as gôndolas presentes em campo ontem encontraram o fundo do canal veneziano, perdidas que ficaram, por segundos, na escuridão daquelas águas barrentas.

Porto Alegre, 9 de fevereiro de 2007.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Terror

No dia em que o pai chegou do exterior, onde estivera afastado do convívio íntimo depois de longos 15 anos de trabalho árduo, durante os quais buscou juntar dinheiro suficiente para garantir conforto à mulher e aos filhos, a família se reuniu ao redor da mesa de jantar para comemorar o seu retorno.
Todos sentados, o visitante pede para ligarem a tevê, o jornal das oito (lembra era sempre às oito) deve estar começando.
Quatorze notícias seguidas depois, nas quais relatos de violência eram alternados com reportagens mostrando mazelas do país e o bloco concluído com algum incidente pitoresco do mundo animal, o pai grita horrorizado:
- Credo! o que eles fizeram com o nosso país?
O filho mais novo puxa o braço, traz mais perto, sussurra no ouvido do pai apontando o televisor:
- Fala baixo, eles podem ouvir.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Vai descer?

MEMÓRIAS OBSCENAS
O balanço das impaciências. A irritação frenética das pessoas. Lembro disso agora que me encontro neste lugar, o lagarto prateado em que se movem desconfortos e ignorâncias, cuja lembrança me vem agora porque recordo que foi este o principal veículo dos meus passeios e deslocamentos durante boa parte da minha pré-adolescência, quando eu adquiri a provisória independência e uma vontade de descobrir o mundo.

Aquele mundo, lembro agora, era bastante apertado e sugestivo.

No início, entretanto, significava liberdade. A possibilidade de sair para a rua, chegar longe, sem depender de meus pais. Dar uma volta na cidade, ruar como dizíamos. Eu morava na periferia, e era preciso um longo deslocamento para ir de um lugar a outro, para descobrir ali fatias do mundo que depois se tornaram chatas e repetitivas: o barzinho do centro, o clube da moda, o lanche todo sábado à noite, a dança do outro lado da cidade; foi assim até eu conseguir a liberdade de chegar às calçadas da capital. Porto Alegre ficava a poucos quilômetros de nós, mas a sensação de estar ganhando o mundo era maior. Era apertado.

Vivi a intensidade desses primeiros deslocamentos como alguém que não tem compromissos com escola e trabalho, mas como um quase adolescente que descobria nas ruas e nos prédios o colorido cintilante de uma metrópole feita de espaços a serem conquistados. De gente. Neles, eu desenhava a minha capital ao mesmo tempo em que descobria sozinho aquela parte da cidade que jamais seria mostrada pelos meus pais, tão ocupados que estavam em seus afazeres. Viajando sozinho para todo lado, minha liberdade consistia na possibilidade de puxar a campainha (ela ainda não era acionada) e descer no ponto em que bem entendesse. Dali, anos depois, caminhar para o meu mundo de bares e calçadas, cambalear noite à dentro, os passos tortos de um jovem que se afunda nas luzes da noite, invade a madrugada, chega pela manhã em casa. Havia, contudo, o quotidiano, ir e voltar da escola todo dia, e um certo blá-blá-blá.

No dia-a-dia, tudo era muito diferente. Cinzento. O bairro em que morava era de trabalhadores. Todos precisam usar o mesmo veículo para seu transporte diário, e o encontro das coletividades nem sempre era tão aprazível e recomendável às sete horas da manhã. Havia cheiros: banhos, marmitas, suores. Surgiram ranços. Muitos empurrões. E outros balanços. Alguém sempre vinha empurrando quando queria descer. Impaciente, eu precisava perguntar:

- Vai descer?

Mesmo assim, a pergunta era pertinente, hoje entendo. Afinal, ficavam todos postados na saída do veículo, irracionalmente aglomerados, reduzindo o espaço de saída na única porta de desembarque, enquanto lá atrás o corredor do carro restava vazio. Era um empurra-empurrra desnecessário e desconfortável na saída, todos juntos, eu não entendia. Fico imaginando hoje que talvez fosse o único conforto de alguns para enfrentar as manhãs geladas aqui do Sul.

Foi andando de ônibus que descobri o epicentro do meu desconforto: a impossibilidade de suportar coletividades, as grandes aglomerações. Mesmo que fosse preciso ficar junto, esquentar, o frio lá fora, a geada abrindo a manhã que se levanta.